quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Governo mantém todos os benefícios trabalhistas e fecha cerco a abusos e fraudes


Quarta-feira, 31 de dezembro de 2014 às 11:00

A segurança fiscal do governo é a melhor forma de garantir a manutenção das políticas públicas nos próximos anos. Para o ministro do Trabalho e Emprego, Manoel Dias, esse é o objetivo das medidas anunciadas nesta semana, para fechar o cerco contra abusos e distorções na concessão do seguro-desemprego e outros benefícios, gerando economia estimada de R$ 18 bilhões em recursos públicos. 
 

SEGURO-DESEMPREGO-PLANALTO


Ao contrário do que tem sido veiculado em alguns meios de comunicação, o governo não acabou com qualquer benefício. “As medidas visam assegurar o patrimônio dos trabalhadores, representado pelo FAT (Fundo do Amparo ao Trabalhador), uma vez que elas buscam garantir direitos iguais para todos os trabalhadores”, afirmou o ministro. Ele lembra que mudanças estão sendo discutidas pela pasta desde o ano passado, quando começaram a ser identificados os problemas.

De acordo com a regras anteriores e se aproveitando delas, algumas pessoas pediam demissão logo após completarem o prazo exigido para, em seguida, serem recontratadas com salário mais baixo, sem carteira assinada, e continuar recebendo o benefício. Essa prática, segundo o ministro, constitui, além de má-fé, uma injustiça com os trabalhadores que recebem o mesmo benefício após muitos anos de trabalho ou estão de fato desempregados.

Esses abusos e fraudes turbinaram as despesas com o Seguro Desemprego em cerca de 10, 35% neste ano, devendo chegar aos R$ 35,2 bilhões. Os recursos para pagamento do auxílio vêm do FAT, que pode amargar déficit de R$ 12 bilhões neste ano.

No âmbito do próprio governo, o ministro lembra que, em 2011, a Controladoria Geral da União (CGU) identificou pela primeira vez o pagamento irregular do benefício. Na ocasião, foi verificado que 1.242 servidores receberam o seguro-desemprego ilegalmente. De acordo com a CGU, os pagamentos indevidos envolveram o setor público e o privado. Em 2011, dos 7.168 milhões de auxílios pagos, 53.903 foram indevidos, gerando perdas de R$ 108,7 milhões.

Entre as regras anunciadas, está a elevação do prazo mínimo para receber o seguro-desemprego. O benefício só será pago após um ano e meio seguido de trabalho, e não após seis meses, como é hoje. Na segunda solicitação, o prazo exigido de tempo trabalhado cai para 12 meses, e na terceira, para seis meses. Além disso, para receber o abono salarial, a pessoa precisará ter trabalhado por seis meses sem interrupção, e não por apenas um mês como ocorre atualmente. O benefício será pago proporcionalmente ao tempo trabalhado, assim como ocorre com o décimo-terceiro salário.

Pescadores
O governo informou nesta semana que também foi identificado acúmulo de benefícios com relação ao Seguro Defeso, ma espécie de Seguro-Desemprego do pescador artesanal. Ele garante um salário mínimo para pescadores que exercem atividade de forma artesanal, durante o período em que a pesca é proibida, para garantir a reprodução das espécies.

Segundo os dados do governo, existem problemas na sua concessão e insegurança jurídica, principalmente porque decisões judiciais têm estendido o benefício a não-pescadores. O crescimento injustificado do pagamento do benefício também ocorreu por falta de critérios objetivos para a comprovação da habilitação. O governo destaca que todos os pescadores continuarão a receber o Defeso. Só deixarão de recebê-lo aqueles que não são pescadores e estão recebendo o benefício indevidamente.

Uma das medidas mais importantes no setor foi a criação de um Comitê Gestor do Seguro Defeso, a exemplo do que ocorre em outros programas do governo, além de atribuir a habilitação do beneficiário ao INSS. Para receber o seguro-defeso, os pescadores artesanais deverão comprovar registro de três anos de trabalho. O pescador também terá de comprovar o pagamento da Previdência por um ano e não poderá acumular outros benefícios.

As medidas são para garantir o benefício exclusivamente a quem é de direito; vedar acúmulo de benefícios assistenciais e previdenciários de natureza continuada com o seguro defeso; incluir carência de três anos a partir do registro do pescador; comprovar a comercialização da produção ou recolhimento previdenciário ambos pelo período mínimo de 12 meses ou período entre defesos; vedar o seguro aos familiares do pescador que não preencham as condições exigidas e o acúmulo de diferentes defesos para receber o benefício.

Veja outras medidas contra os abusos
O governo também mudou as regras para a pensão por morte, que só valerão para os benefícios concedidos a partir de agora. Para os atuais beneficiários, não haverá qualquer mudança.
 
Para que o dependente receba a pensão, o tempo de contribuição à Previdência será de dois anos. O tempo mínimo de casamento ou união estável passa a ser também de dois anos – atualmente, não existe limite. O valor da pensão será a metade do salário, mais 10% por dependente. Está previsto o fim do benefício vitalício para cônjuges jovens, com menos de 44 anos.

Os novos pagamentos de auxílio-doença serão feitos após 30 dias de afastamento, e não depois de 15 dias como é atualmente. 

O governo lembra que, segundo estudos feitos pela Previdência Social com uma amostra de 132 países, 78% deles possuem alguma regra de carência para esses benefícios.

Quanto ao valor do benefício, 82% dos países adotam regra que limitam o valor do benefício (taxa de reposição). E 77% estabelecem condicionalidades para cônjuges e companheiros. Entre os requisitos está a exigência de idade mínima (41% dos países); o tempo mínimo de casamento ou união estável (31% dos países) e a cessação do benefício com novo casamento (55% dos países).


 

domingo, 28 de dezembro de 2014

Avanços tributários marcaram ano, mas há pendências relevantes no STJ e STF

Retrospectiva 2014

28 de dezembro de 2014, 8h28

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São centenas de milhares de processos julgados nos Tribunais Superiores todos os anos. Permanece, no entanto, uma sensação de que mais um ano se passou e poucos temas tributários de relevância foram definitivamente solucionados. Muito esforço e pouco resultado costumam ser sinais de ineficiência. No intuito de tornar o sistema mais ágil, o exame de teses passou a ser feito por meio do sistema de repercussões gerais (no STF) e de recursos repetitivos (no STJ). Todavia, ainda há o que fazer. Entre outras possibilidades seria conveniente que os tribunais decidissem a partir de doutrina construída pela jurisprudência.
 
No campo do Direito Tributário, para que se tenham elementos próprios ao exame das questões controvertidas, há necessidade de definição dos conceitos relativos aos tributos de que cuida a Constituição, como os de renda, receita, circulação de mercadoria, não cumulatividade e salário.. Por isso que, em matéria tributária, os tribunais em geral – e com maior razão o Supremo Tribunal Federal – deveriam partir da definição dos pressupostos teóricos de determinado tema antes de passar ao exame da tese na qual os mesmos se inserem. E não o contrário. Tal processo evitaria que conceitos idênticos fossem diferentemente interpretados, conforme o caso submetido a julgamento. A uniformização da exegese de variados preceitos constitucionais faria com que os tribunais superiores fossem construindo uma doutrina própria.
 
Nessa linha, uma sugestão com relação aos casos de repercussão geral em matéria tributária seria, além de agrupá-los pelo tema tratado (como já é feito), destacar as questões conceituais fundamentais para exame do Tribunal, como pressuposto para a solução do problema. Seriam, por exemplo, pautadas para julgamento todas as questões cuja solução dependesse do conceito de “renda”. Uma vez definido este conceito, passar-se-ia à sua aplicação em cada tese jurídica e, na sequência, aos casos concretos.
 
A mesma racionalidade se aplicaria com relação ao julgamento dos recursos repetitivos, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, com relação à definição dos conceitos tributários e de toda a gama de normas processuais tributárias, como as aplicáveis às execuções fiscais, compensações e parcelamentos. Note-se que uma vez definidos os conceitos relativos às questões tributárias seriam eles aplicáveis a todas as matérias que partissem daquele mesmo pressuposto teórico.
 
A par disso, é preciso ressaltar que, além dos julgamentos havidos nos Tribunais Superiores, tornam-se cada vez mais relevantes os do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF). Por se situarem na esfera dos recursos administrativos, não é raro que os julgamentos do CARF tratem de forma inédita de questões importantes ainda não submetidas ao Judiciário. Daí a necessidade de uniformização interna quanto ao tratamento da legislação tributária, o que incumbe à Câmara Superior de Recursos Fiscais no âmbito próprio de competência de cada uma de suas três Seções. Neste sentido, seria útil que se apreciassem previamente questões conceituais para, posteriormente, aplicá-las nos casos particulares.
 
Aproveitamos a oportunidade de apresentar a retrospectiva dos julgamentos tributários mais importantes de 2014 e também os que prometem continuação em 2015 para ilustrar o alcance do exame que se propõe. Assim, passamos a agrupar as questões sob análise não pelas respectivas teses, mas sim pelos pressupostos teóricos que lhes dão suporte.

Conceito de Renda
O fato gerador do imposto de renda é um exemplo clássico de tema sobre o qual ainda não se firmou um conceito teórico nos tribunais. A falta de consenso faz com que as questões sejam julgadas a partir de interpretação não uniforme de conceitos decorrentes da Constituição. O que se está a dizer verifica-se, por exemplo, nas decisões proferidas a respeito das seguintes teses:

IR lucro das coligadas e controladas – STF
Recentemente, o STF manifestou posição sobre a constitucionalidade da tributação dos lucros de controladas no exterior e a inconstitucionalidade da tributação quanto às empresas coligadas não sediadas em paraísos fiscais (ADI 2.588-DF e RREE nºs. 541.090 e 611.586). A aplicação do conceito de renda se deu em sentido oposto ao decidido quanto à inconstitucionalidade da tributação (ILL) incidente sobre o lucro considerado fictamente distribuído pelas pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil (RE 172.058-1, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ: 13/10/1995).

Ágio em subscrição de quotas de sociedade limitada – Carf
A 1ª Turma da CSRF decidiu, em 7/10/2014 (P.A. 13899.002346/2003-88), que a reserva de ágio gerada na aquisição de quotas de sociedade limitada representa acréscimo tributável pelo IR e pela CSLL. Houve reforma do acórdão recorrido, que havia adotado posição favorável ao contribuinte, no sentido de que a reserva de ágio na subscrição de quotas de sociedade limitada não representa renda tributável, pois não haveria, com a sua implementação, qualquer variação patrimonial positiva.

IR Fonte – pagamentos a beneficiário residente no exterior – Carf
A 2ª Turma da CSRF decidiu, a favor do contribuinte, que, nos termos do art. 43 do CTN, a incidência do IR Fonte pressupõe, necessariamente, a disponibilidade econômica ou jurídica dos valores por parte do beneficiário do pagamento, o que não ocorre com o simples crédito contábil antes da data aprazada para respectivo pagamento.

Conceito de receita bruta para fins de incidência de PIS e Cofins
Cessão onerosa de créditos de ICMS não constituem receitas – Carf
Pela Primeira vez, a CSRF do Carf (PA nº. 11020.000801/2007-38) aplicou o entendimento do STF firmado em sede de Repercussão Geral, no RE nº. 606.107, no sentido de que “Sob o específico prisma constitucional, receita bruta pode ser definida como o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições”. Por isso que o “aproveitamento dos créditos de ICMS por ocasião da saída imune para o exterior não gera receita tributável. Cuida-se de mera recuperação do ônus econômico advindo do ICMS, assegurada expressamente pelo art. 155, § 2º, X, “a”, da Constituição Federal”.

Conceito de faturamento – PIS/Cofins
Exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/COFINS – STF
No RE 240785, foi adotado o conceito de faturamento como sendo o ingresso no patrimônio decorrente da venda de mercadoria e/ou da prestação de serviços, que não se confunde com despesa. O julgamento, entretanto, contou com a ressalva de que esse entendimento diz respeito apenas ao caso concreto, cujos efeitos restringem-se às partes litigantes. A questão será oportunamente reapreciada pela Corte Suprema, em sua atual composição, na ADC nº. 18 e/ou no RE 574.706, este último sob o regime da repercussão geral.

Cofins sobre receitas operacionais – STF
O conceito de faturamento será essencial para o julgamento do RE 400479, que trata das receitas decorrentes de prêmios de seguros antes da EC 20/98. Isso porque não haveria “receita da venda de mercadorias e/ou prestação de serviços”. A depender do que for definido neste caso, outras atividades não seriam consideradas sujeitas ao PIS/COFINS, tais como locação de bens móveis (não é serviço e nem compra e venda) e receitas financeiras (em discussão em outro RE).

Conceito de salário para incidência de contribuição previdenciária
Contribuição previdenciária sobre participação nos lucros – STF
Em 30/10/2014, o STF, no RE 569441 (acórdão não publicado), estabeleceu que incide a contribuição previdenciária sobre a participação nos lucros da empresa, no período entre a CF/88 e a MP nº. 797/94, por se tratar de verba remuneratória e não indenizatória. No entanto, não se explicitou quais são os critérios constitucionais que determinam se uma verba é salarial ou indenizatória.

Participação nos lucros das empresas – Carf
Afirmou-se no julgamento dos PAs nºs. 35884.003885/2006-89 e 14485.000408/200775 que os valores pagos a título de PLR somente podem compor a base de cálculo das contribuições previdenciárias se a fiscalização comprovar de forma clara que o contribuinte descumpriu a Lei nº. 10.101/00, caracterizando os valores pagos como “salário indireto”.

Contribuição Previdenciária sobre verbas pagas aos trabalhadores – STJ
Nos Recursos Especiais 1.230.957, 1.240.038 e 1.455.089, os ministros componentes da 1ª Seção do STJ entenderam que o referido tributo não incide sobre o terço constitucional de férias indenizadas ou gozadas, o aviso prévio indenizado e a importância paga pelo empregador ao empregado durante os primeiros quinze dias de afastamento por motivo de doença. Por outro lado, decidiu que incide sobre o salário-maternidade e o paternidade, por possuírem natureza salarial. Em outro Recurso Repetitivo (REsp 1.358.281/SP) entendeu-se que há incidência da referida contribuição sobre as verbas pagas a título de horas extras, bem como de adicional noturno e de periculosidade.

Coisa julgada
Em 22 de outubro de 2014, o STF, no RE 590.809, estabeleceu que a modificação da jurisprudência, posteriormente ao acórdão rescindendo, não permite o ajuizamento de ação rescisória por força da Súmula 343/STF. Mas não ficou claro se a decisão se aplicará também nas hipóteses em que a interpretação do STF se dá em controle concentrado e abstrato de constitucionalidade. Do mesmo modo, não se esclareceu se ficariam abrangidos aqueles casos em que não havia pronunciamento prévio do STF e, posteriormente à prolação do acórdão rescindendo, houve manifestação de forma contrária.

Na mesma linha já havia se manifestado a Corte Especial do STJ (REsp  736650/MT), no sentido de que a “ pacificação da jurisprudência desta Corte em sentido contrário e posteriormente ao acórdão rescindendo não afasta a aplicação do enunciado n. 343 da Súmula do STF”.

Conceito de circulação de mercadorias
ICMS sobre importação de mercadorias – STF
Em 11/9/2014, o STF, no RE 540829 (rep. geral), assentou a inconstitucionalidade da incidência do ICMS sobre importação de mercadorias por meio de leasing (financeiro ou operacional), salvo na hipótese de antecipação da opção de compra. A decisão consolida o entendimento da Corte de que o ICMS só incide na transferência de propriedade de mercadoria, seja em operações internas, seja na importação. Daí porque apenas a compra do bem, e não a sua posse, caracteriza circulação econômica para efeito de tributação.

Competência para julgar conflitos entre lei ordinária e lei complementar
IPI sobre descontos incondicionais – STF
O STF, no RE 567935 (submetido a repercussão geral), assentou a inconstitucionalidade da incidência do IPI sobre os descontos incondicionalmente concedidos pelo vendedor ao comprador, conforme previsto no art. 15 da Lei nº. 7.798/89. Isso porque, segundo a Constituição (art. 146, III, “a”), apenas a lei complementar poderia definir base de cálculo do imposto. No caso, ao tratar da base de cálculo do IPI diversamente do previsto no CTN, a Lei nº. 7.789/89 afrontou diretamente o referido artigo, por invasão de competência reservada à lei complementar.

ICMS sobre habilitação de telefone celular – STF
No RE 572.020, o Supremo assentou a inconstitucionalidade da incidência de ICMS sobre o serviço de habilitação de celulares, pois o imposto só poderia incidir sobre atividade-fim do serviço de comunicação, excluindo-se as denominadas atividades-meio (preparatórias ou acessórias).

Base de cálculo das contribuições sociais
Contribuição previdenciária de 15% para as cooperativas
Em 23/4/2014, o Pleno do STF assentou, no RE 595838, a inconstitucionalidade da cobrança de 15% de contribuição previdenciária sobre o valor de nota fiscal ou fatura emitida por cooperativa de serviços. Em suma, decidiu-se que pagamentos a cooperativas não se confundem com rendimentos destinados a pessoas físicas como contraprestação ao trabalho (salário) e, por isso, a hipótese não se enquadra na alínea ‘a’ do art. 195, I, da CF. Tratando-se de contribuição nova, somente poderia ter sido instituída por lei complementar.

Crédito de ICMS
Foi editado o verbete da Súmula 509/STJ: “Créditos de ICMS – aproveitamento pelo comerciante de boa-fé - É lícito ao comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda.” A propositura da Súmula tomou por base o decidido no REsp 1.148.444, analisado sob a sistemática dos repetitivos, no qual se assentou como sendo ex nunc os efeitos da decisão proferida na seara administrativa que declarou a inidoneidade das notas fiscais, situação que não afasta a boa-fé do terceiro adquirente. Daí o reconhecimento da possibilidade de aproveitamento do crédito.
Além dos julgamentos referidos acima, há muitas outras questões relevantes pendentes de julgamento no STF e no STJ. Destacam-se os seguintes casos com julgamento já pautado ou iniciado:

— STF - Foi reconhecida repercussão geral do tema relacionado à definição das balizas do princípio da não cumulatividade das contribuições sociais (PIS/COFINS), bem como a existência de um conceito constitucional de insumo, em observância ao disposto nos §§ 9º e 12 do artigo 195 da CF (ARE 790.928, j. 16/08/2014, Rel. Min. Luiz Fux).

 STF – Discute-se, no RE 684261, a constitucionalidade da sistemática de redução ou majoração da alíquota do Seguro Acidente de Trabalho - SAT e dos Riscos Ambientais do Trabalho - RAT, mediante aplicação do fator acidentário de prevenção – FAP. Trata-se de examinar se a regulamentação da matéria observou o princípio da legalidade estrita em matéria tributária.

 STF - O Recurso Extraordinário 460320 (RE) cuida de examinar se tratado internacional pode ser revogado por lei interna posterior, ou se se trata de norma de sobredireito, nos termos do art. 98 do CTN.

 STF - PSV 69 – Revogação incentivos ficais ICMS: “Qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do Confaz, é inconstitucional”. Há, no momento, ampla discussão no Congresso Nacional sobre o tema, o que recomendaria sua não apreciação.

 STJ - REsp 1.459.779/MA - Imposto de Renda – Adicional de 1/3 de férias gozadas. O julgamento da controvérsia possibilitará que o STJ defina o conceito de renda para fins de tributação da pessoa física, bem como o que se entende por salário e remuneração.

— STJ - REsp 1.470.443/PR – IRPF sobre os juros de mora oriundos do benefício previdenciário pago em atraso. Neste caso, também se põe o exame do conceito de renda, além de definir se a natureza dos juros de mora é remuneratória ou indenizatória.

— STJ - REsp 1.200.492/RS – O caso versará sobre a incidência – ou não – da contribuição social destinada ao PIS e da COFINS sobre juros sobre capital próprio. Para o julgamento do recurso em questão se espera que o órgão colegiado venha a definir qual sua natureza, bem como o que se entende por faturamento e receita.

 STJ - REsp 1.201.993/SP – O recurso em questão versa sobre o prazo prescricional para o redirecionamento da execução fiscal de uma pessoa jurídica contra os sócios. Destaque para o conceito de prescrição.

No Carf, ficou para o próximo ano a definição, pela CSRF, de questões importantes, tais como:

 Dedutibilidade de ágio gerado na compra de empresas em processo de privatização;
 Tributação de lucros no exterior;
 Dedução dos juros sobre capital próprio de exercícios pretéritos;
 Definição dos contornos que caracterizam os incentivos fiscais como Subvenção para Investimento, importância cuja legislação autoriza a exclusão da base de cálculo do IRPJ; e
 Definição do conceito de insumo para fins do PIS e da Cofins não cumulativos

Essas, em breve apanhado, são as principais matérias que foram objeto de decisões em 2014 e aquelas que ainda aguardam exame.

Fonte

 

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Um mito e algumas verdades sobre os tributos no Brasil

Debate questiona crença segundo a qual carga tributária brasileira é “altíssima”. Problema real é outro: ricos e poderosos pagam pouquíssimo; somos o país dos impostos injustos
 
por Antonio Martins publicado 29/08/2014 18:24  

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“O contador e sua mulher”, de Marinus van Reymerswaele, 1539
[Este é o blog do site Outras Palavras em CartaCapital. Aqui você vê o site completo]

Ao longo do processo eleitoral deste ano, um mito voltará a bloquear o debate sobre a construção de uma sociedade mais justa. Todas as vezes em que se lançar à mesa uma proposta de políticas públicas avançadas, demandando redistribuição de riquezas, algum “especialista” objetará: “não há recursos para isso no Orçamento; seria preciso elevar ainda mais a carga tributária”. A ideia será, então, esquecida, porque a sociedade brasileira está subjugada por um tabu: afirma-se que somos “o país com impostos mais altos do mundo”. Sustenta-se que criar novos tributos é oprimir a sociedade. Impede-se, deste modo, que avancemos para uma Reforma Tributária.
 
A partir das 10h desta sexta-feira (29/8), três conhecedores profundos do sistema de impostos no Brasil enfrentaram este mito, num debate transmitido por webTV (acesse aqui). O auditor da Receita Federal Paulo Gil Introini, ex-presidente do sindicato nacional da categoria e os economista Jorge Mattoso Evilásio Salvadorargumentaram, com base em muitos dados, que o problema da carga tributária brasileira não está em ser “a mais alta do mundo” (uma grossa mentira), mas em estar, seguramente, entre as mais injustas do planeta. Os grandes grupos econômicos e os mais ricos usam seu poder político para criar leis que os isentam de impostos — despejados sobre as costas dos assalariados e da classe média. A mídia comercial esconde esta realidade, para que nada mude. No debate, organizado em conjunto pela Campanha TTF BrasilFundação Perseu Abramo, emergiram alguns fatos muito relevantes, porém pouquíssimo conhecidos.
 

> A carga tributária brasileira não é a “mais alta do mundo”, mas a 32ª (entre 178 países). O cálculo é de um estudo comparativo da Fundação Heritage, um thinktank norte-americano conservador — mas com algum compromisso com a realidade.
 
> A carga tributária subiu consideravelmente, de fato, entre 1991 e 2011. Passou de 27% do PIB para 35,1%. Porém, a parte deste aumento de arrecadação foi consumido no pagamento de juros pelo Estado — quase sempre, para grandes grupos econômicos. A taxa Selic subiu para até 40% ao ano nas duas crises cambiais que o país viveu sob o governo FHC. O aumento do gasto social (de 11,24% do PIB para 15,24%, no período), que ocorreu de fato, a partir de 2002, consumiu apenas parte do aumento da receita.
 
> O poder econômico usa uma série de expedientes para livrar-se de impostos. O principal é a estrutura tributária brasileira. Ela foi cuidadosamente construída para basear-se em impostos indiretos (os que incidem sobre preços de produtos e serviços) e reduzir ao máximo os impostos diretos. Há duas vantagens, para as elites, nesta escolha. a)Impostos indiretos são, por natureza, regressivos. A alíquota de ICMS que um bilionário paga sobre um tubo de pasta de dentes, uma geladeira ou a conta de luz é idêntica à de um favelado; b) Além disso, assalariados e classe média consomem quase tudo o que ganham — por isso, pagam impostos indiretos sobre toda sua renda. Já os endinheirados entesouram a maior parte de seus rendimentos, fugindo dos tributos pagos pelo conjunto da sociedade.
  
> Esta primeira distorção cria um cenário quase surreal de injustiça tributária. Um estudo do IPEA (veja principalmente o gráfico 2, à página 6) revela que quanto mais alto está o contribuinte, na pirâmide de concentração de renda, menos ele compromete, de sua renda, com impostos. Por exemplo: os 10% mais pobres contribuem para o Tesouro com 32% de seus rendimentos; enquanto isso, os 10% mais ricos, contribuem com apenas 21%…
 
> Basear a estrutura tributária em tributos indiretos é uma particularidade brasileira, que atende aos interesses dos mais ricos. Aqui os Impostos sobre a Renda respondem por apenas 13,26% da carga tributária. Nos países capitalistas mais desenvolvidos, membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os impostos diretos correspondem a 2/3 do total dos tributos.
> Além disso, e sempre em favor dos mais poderosos, o Brasil praticamente renuncia a arrecadar impostos sobre o patrimônio. Aqui, os tributos que incidem diretamente sobre a propriedade equivalem apenas a 1,31% do PIB. Este percentual chega a 10% no Canadá, 10,3% no Japão, 11,8% na Coreia do Sul e 12,5% nos Estados Unidos…
 
> Ainda mais privilegiados são setores específicos das elites. O Imposto Territorial Rural (ITR), que incide sobre a propriedade de terra, arrecada o equivalente a apenas 0,01% do PIB. A renúncia do Estado a receber tributos sobre os latifundiários provoca, todos os anos, perda de bilhões de reais — que poderiam assegurar, por exemplo, Saúde e Educação públicas de qualidade.
 
Nos últimos treze anos o Brasil viveu um processo real — embora ainda muito tímido — de redistribuição de renda. Entre 1991 e 2002, o Coeficiente de Gini caiu de 0,593 para 0,526, depois de décadas de elevação (segundo este cálculo, quanto mais alto o índice, que vai de 0 a 1, maior a desigualdade). Ainda é muito pouco: segundo cálculos do Banco Mundial, em 2013 o país era o 13º mais desigual do mundo. Para continuar reduzindo a desigualdade, uma Reforma Tributária é instrumento essencial. Não é por outro motivo que as elites insistem em manter este conservar este tema como tabu.

 Fonte

sábado, 6 de dezembro de 2014

O relato tocante de uma vítima da ditadura


247 - A ministra Eleonora Menicucci, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, prestou um depoimento emocionante à Comissão Nacional da Verdade, nesta sexta-feira, durante o evento de lançamento do portal "Memórias da Ditadura".
 
"Só nós que vimos sangue ser derramado, vidas serem perdidas, e que tivemos as nossas vidas e nossos corpos manchados pela ditadura, sabemos o que foi. E por isso eu tenho coragem e estou aqui como ministra de Estado, mas antes de tudo como mulher, como mãe que era na época e ainda sou, e avó que hoje sou, para dizer o que digo sempre aos meus netos: a vovó foi presa, o vovô foi preso, formos barbaramente torturados, é por isso que a vovó operou do coração, é por isso que a vovó teve que colocar dois dentes postiços, é por isso que a vovó tem dificuldade na coluna, mas é por isso que a vovó é uma senhorinha jovem que lutará até o fim da vida para que vocês possam contar essa história", disse ela.
 
"Eu naquela época preferia ter morrido, tamanha a dor da tortura física e psicológica. Mas hoje tenho uma alegria enorme por ter sobrevivido para poder contar essa história", acrescentou. "Sempre é muito difícil. Falar de dor, de sofrimento, lembrar companheiros e companheiras que foram assassinados é muito difícil e doloroso, porque fica no corpo da gente, no psíquico da gente. Mas o melhor de tudo, a forma mais bonita da resistência é que tudo isso se torna um agir político."


Serra confessa ter sabotado projeto do trem-bala


247 - O senador eleito por São Paulo, José Serra (PSDB), fez ontem uma confissão grave. Ele afirmou para uma plateia de simpatizantes ao PSDB que inseriu Campinas no projeto do trem-bala, para atrasá-lo. Ele disse considerar "hilariante" a proposta do projeto do trem-bala, que ligaria São Paulo, Rio de Janeiro e Campinas. Para o tucano, o projeto é "falido". Serra fez a alteração quando era governador de São Paulo.
 
Ele disse ainda que o presidente do BNDES, Luciano Coutinho, de quem era próximo, concordou com sua análise e ajudou a atrasar o andamento da proposta. "Enfiei Campinas logo que veio o projeto. Para quê? Para complicar, verdade, para ganhar tempo. Peguei o Luciano Coutinho, que é o presidente do BNDES, foi meu colega, um sujeito informado, e falei 'você não vai entrar nessa loucura de trem bala, né?'. Então eu vou propor que o BNDES faça um estudo e você demora. E ele fez mesmo, demorou para burro, sabe? Para ganhar tempo", disse Serra.
 
Questionado pelo Broadcast Político, serviço da Agência Estado de notícias em tempo real, sobre o assunto após o evento, Serra disse que a sua fala ali não era "coisa para levar para jornalista", mas admitiu que usou estratégias para protelar o projeto do trem-bala, que, segundo ele, demonstrou depois não ter viabilidade econômica.
 
A assessoria de imprensa do BNDES afirmou que a informação não procede e disse que "a decisão de incluir Campinas no traçado do trem de alta velocidade foi tomada para atender a demandas da própria região e aproveitar o potencial do aeroporto de Viracopos."
 


 

domingo, 30 de novembro de 2014

Francis e o Petrolinho


29 novembro 2014


Caio Blinder, Paulo Francis, Lucas Mendes e Nelson Motta: a equipe do
Manhattan Connection nos anos 1990


Naquele outubro de 1996, no café da manhã antes da gravação, Francis estava de mau humor. Era normal. Acabava de sair da cama.
Meia hora depois ele estava de bom humor. Era normal. Nossa conversa na copa antes de gravar era fiada. Francis não falou em Petrobras. No meio do programa, ele jorrou denúncia e transcrevo a gravação:
Francis: "Os diretores da Petrobras todos põem o dinheiro lá...(Suíça) tem conta de 60 milhões de dólares..."

Lucas: "Olha que isso vai dar processo..."

Francis: "É...um amigo meu advogado almoçou com um banqueiro suíço e eles falaram que bom mesmo é brasileiro (…) que coloca 50 milhões de dólares e deixa lá".

Lucas: "Os diretores da Petrobras tem 50 milhões de dólares?"

Francis: "Ahh é claro... imaginem... roubam... superfaturamento...é a maior quadrilha que já existiu no Brasil".

Foi além, mas não deu nomes dos diretores. Nem citou fontes. No próprio programa, o número variou de US$ 50 milhões para 60 milhões. Preocupado, perguntei se queria que cortasse a denúncia, embora o programa, depois de gravado, só sofra cortes por tempo. Francis disse que não.

Na imprensa, numa escala de 1 a 10 em repercussão, a denúncia do Francis mal registrou uns 2 pontinhos. Saíram notas em colunas. Ninguém cobrou da Petrobras. Não sei por que o Francis nunca levou a denúncia para os poderosos Globo, Estadão e Jornal da Globo, onde trabalhava, além do Manhattan Connection, e tinham calibre muito mais grosso do que o GNT.

Seria o poder da Petrobras de silenciar a mídia com sua publicidade? Ou sua reputação na época estava acima de qualquer suspeita? A limitada audiência do canal?

Em novembro, Francis anunciou no programa, também sem aviso prévio, que estava sendo processado pelos diretores da Petrobras, que "queriam US$ 100 milhões de indenização". Na primeira página da carta de intimação dos advogados dos diretores aparecem sete nomes, mas não há este número.

Ainda não descobri de onde saiu. Estes valores quase nunca constam da primeira comunicação entre o processador e o processado.
E pagou sete mil...
Francis entrou num inferno legal. Por sugestão do amigo Ronald Levinsohn, contratou uma advogada e pagou US$ 7 mil. Quando comentei que não era muito, o Francis ficou furioso. Disse que eu não sabia das finanças dele. Até que sabia, porque ele me contava, mas uma só defesa num processo grande poderia destruir a poupança dele. Se perdesse, ficaria arruinado por muito menos do que US$ 100 milhões.

Repercussão na imprensa sobre o processo? Mínima. Saíram notas sobre os assombrosos US$ 100 milhões.
'Arrasado'
Em dezembro, Francis foi passar o Ano Novo em Paris com Sonia Nolasco, Diogo e Anna Mainardi. Diogo disse que ele parecia arrasado. Poucas semanas depois, em janeiro, ligou para o Diogo animadíssimo. Tudo estava sob controle. Diogo comentou com a mulher que o Francis devia ter tomado a bolinha certa naquele dia.

É possível que Paulo Mercadante, seu advogado no Brasil e amigo desde os tempos de Pasquim, tenha informado a ele que o processo não poderia correr na Justiça americana, porque o programa não ia ao ar nos Estados Unidos. Este tipo de processo no Brasil está mais para um punhado de reais do que para os absurdos US$ 100 milhões que assombravam o Francis.

Dia 31 de janeiro, Francis apareceu na gravação passando a mão no ombro esquerdo e se queixando de dor. Saiu direto para o médico, Jesus Cheda, tomar uma injeção de cortisona, como sempre fazia quando estas dores apareciam. Bursite, dizia.

Quatro dias depois, terça-feira, por volta de 5 da manhã, Francis sofreu um fulminante ataque cardíaco e caiu morto no meio da sala, onde ainda estava quando cheguei. O telefone não parava, Sonia não atendia. Atendeu um deles, do presidente Fernando Henrique Cardoso, que deu uma bronca póstuma no Francis pela irresponsabilidade com a própria saúde.

Francis, havia muitos anos, tinha parado de tomar porres, de fumar e de comer bifões crus. O controle da Sonia deu resultado, mas o controle não resolveu o problema da saúde preventiva nem o sedentarismo. Ela não conseguia levá-lo a médicos sérios para fazer check-ups regulares.

Cheesebúrgueres
Melhorou a dieta, mas continuou chegado nos cheesebúrgeres do PJ Clarke's na frente da Globo na hora do almoço e comida chinesa perto da casa dele, onde fez sua última ceia, no Chiam. Parecia um touro de forte. Teve tumores benignos no pescoço, mas não adoecia e nunca deixava de trabalhar. Nem fazia exercício, Nunca. O máximo era uma caminhada semanal com Elio Gaspari do restaurante Bravo Gianni ao museu Metropolitan, para queimar calorias.

Era o dia favorito dele. As noites favoritas eram no balé, com Sonia, ou assistindo óperas e filmes antigos em casa. O último na noite da morte, foi Notorious (Interlúdio no Brasil), de Hitchcock, com Cary Grant e Ingrid Bergman. Da denúncia à morte de Francis foram quatro meses.

Os diretores da Petrobras foram atrás do espólio e da viúva Sonia Nolasco, mas, em parte, por intervenção do presidente Fernando Henrique Cardoso e do próprio advogado, Paulo Mercadante, desistiram do processo. Felizmente o Brasil não desistiu. O petrolinho do profético Francis gerou o Petrolão. A operação Lava Jato deveria ser rebatizada Operação Paulo Francis.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

O jovem que acertou 95% do ENEM

27/Nov/2014 às 18:40

“Sempre ouvi falar da dificuldade que é o Enem e tinha medo. Mas quando vi, sinceramente, achei muito fácil. Quando corrigi pelo gabarito, não fiquei assustado, apenas lamentei pelas oito (questões erradas)”, diz com a simplicidade de quem dormia em média quatro horas por dia para garantir o bom desempenho. 

Joao vitor ceara estudante enem
João Vitor Claudiano dos Santos, aluno de escola pública do Ceará

Ver João Vitor falar sobre a recente conquista é assistir à luta entre a timidez do garoto mais acostumado aos livros do que a grandes conversas e o orgulho de quem está vendo o esforço recompensado. O número da vitória é de impressionar: João Vitor acertou 172 questões das 180 que compõem o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). O equivalente a 95,5% de acertos. Mas João Vitor Claudiano dos Santos, 16, aluno do 2º ano da Escola de Ensino Médio Governador Adauto Bezerra, ainda não consegue mensurar o significado do feito.

O menino agora espera o resultado oficial, que deve sair em janeiro de 2015, mas, em um comparativo, João Vitor ultrapassou os 164 acertos da estudante mineira Mariana Drummond, que conquistou o primeiro lugar no Enem 2013. A nota final ainda depende do desempenho na Redação, que João acredita ter sido a mais difícil das avaliações.

Sempre ouvi falar da dificuldade que é o Enem e tinha medo. Mas quando vi, sinceramente, achei muito fácil. Quando corrigi pelo gabarito, não fiquei assustado, apenas lamentei pelas oito (questões erradas)”, diz com a simplicidade de quem dormia em média quatro horas por dia para garantir o bom desempenho, que ele credita também ao apoio recebido dos professores.

A ficha da biblioteca, lugar preferido de João, já vai na segunda folha e ultrapassa os 40 livros. A leitura assídua é o segredo dele. “O que tem de cansativo no Enem são os textos grandes. Então, minha estratégia foi me adaptar à leitura, ler livros grandes, alguns com linguagem rebuscada”.

João, cujo maior orgulho é ter estudado a vida toda em escola pública, ainda não sabe se irá cursar o 3º ano, mas quer fazer Ciências Biológicas e sonha em viajar para o Reino Unido pelo Ciência Sem Fronteiras. Aos 16 anos, ele tem muito bem traçados os planos da vida. “Sempre me vejo fazendo especialização em bioquímica e biologia molecular. Quero ser pesquisador e estudar o resto da vida”.

Criado pela mãe, a aposentada Ana Maria Santos, morador do bairro Vila União, quarto de cinco irmãos, João será o primeiro da família a ingressar no ensino superior. Os estudos foram, para ele, a forma de transformar o próprio destino. “Sou um garoto que não conheceu o pai, que sempre sofreu bullying por ser nerd, por causa do cabelo, do sapato, da magreza. O estudo não combateu minha timidez, mas me ajudou a ser feliz”.

Domitila Andrade, O Povo



quinta-feira, 13 de novembro de 2014

ENEM é caso de sucesso mundial mesmo com campanha contrária da mídia

12/Nov/2014 às 20:28

A universalização do ENEM, iniciada em 2009, democratizou o acesso de todos os estudantes a vestibulares nas melhores faculdades do Brasil. No entanto, esse enorme avanço quase foi liquidado por uma campanha cruel e implacável da mídia


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(Imagem: Pragmatismo Político)

Luis Nassif, GGN

Um estilo jornalístico viciado e anacrônico é o principal responsável pelas dificuldades do país em trilhar novas experiências.

Em um Congresso de Secretários do Planejamento, cobrei dos secretários presentes a falta de empreendedorismo público, de novas experiências de gestão.

A resposta foi simples.

Na fase de implantação de novos projetos não há como não aparecerem problemas. Afinal, trata-se da implantação. Qualquer problema é superestimado pela mídia, utilizado para torpedear o projeto. Alguns projetos acabam morrendo no caminho por esta falta de compreensão. Depois de implantados, os projetos vitoriosos não merecem o reconhecimento.

O gestor público corre um enorme risco propondo o novo, sem nenhuma possibilidade de recompensa posterior: o reconhecimento público.

Tome-se o caso do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio). Em 2009, com sua universalização, começando pela unificação dos vestibulares das universidades federais, mudou a face dos vestibulares no país, democratizando o acesso de todos os estudantes a vestibulares nas melhores faculdades.
 
No último domingo foram completadas as provas, com 6,2 milhões de inscritos, um caso de sucesso mundial. A não ser alguns episódios isolados de cola, não houve um problema sequer relatado por uma mídia capaz de superdimensionar os menores problemas.

O ENEM tornou-se uma instituição nacional. Junto com a expansão das novas universidades públicas e privadas, mudou a cara do ensino superior. Onde estão os velhíssimos capitães de ensino, que dominavam politicamente o setor e, com suas intermináveis páginas de publicidade, exerciam um poder absurdo sobre a mídia? Onde Di Gênio e outros símbolos de um velho modelo carcomido? Foram engolfados pela modernização e pela entrada de novos grupos no mercado.
 
No entanto, esse enorme avanço quase foi liquidado por uma campanha implacável da mídia, onde se misturaram má fé, incompreensão e jogadas políticas de baixo nível.
Problemas de vazamento de uma prova – em uma gráfica que tem a Folha como sócia -, problemas pontuais com um ou outro simulado, afetando proporções ínfimas dos inscritos, foram superdimensionados, abriu-se todo o espaço para um procurador exibicionista, tudo com a intenção de liquidar o programa.

Não se pensou nos benefícios para o país, para os alunos, nas oportunidades que se abriam com a democratização do acesso às vagas. A ideia fixa era impedir que seu eventual sucesso pudesse ser capitalizado pelo governo que o bancou.

A campanha implacável dos jornais
Logo após a notícia do vazamento da prova na gráfica Plural, em 19 de outubro de 2009, o Estadão não deixou barato: “Os problemas em cadeia gerados pelo vazamento da prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), frustrando estudantes e desorganizando os vestibulares das universidades, são mais uma amostra do que pode ocorrer quando os interesses eleiçoeiros são postos à frente da racionalidade administrativa nos órgãos técnicos do Estado”. Se tivesse prevalecido a opinião do jornal, teria sido imediatamente interrompida a implantação do ENEM.

Houve inúmeras tentativas de atribuir a responsabilidade do vazamento ao INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas) e com isso politizar ainda mais a discussão. O jogo terminou apenas em agosto de 2011 quando um desembargador do TRF-3 ordenou a exclusão da Plural do processo, sustentando que ela não cumprira o que estava definido no edital.

Custou a Haddad a inimizade eterna da Folha.

O procurador exibicionista
Em nome dessa mesquinharia, grupos de mídia transformaram um Procurador da República exibicionista, Oscar Costa Filho, do Ceará, em personagem nacional.

Com os holofotes sobre ele, Costa Filho se vangloriava de ter-se tornado um especialista em melar vestibulares. “Sou fundamentalmente um professor. É até por isso que falo assim com esse tom e sempre gesticulando muito”, observava aos jornalistas que o procuravam.

O procurador constatou que o professor de um cursinho de Fortaleza – com 639 estudantes – vazou uma das provas do simulado. Com base nisso, pretendeu anular o ENEM em todo o país. O MEC (Ministério da Educação) respondeu prontamente sobre a maneira de contornar o problema sem prejudicar os demais inscritos. Mas a cobertura incessante da mídia tentava acabar com o programa.
O Procurador tornou-se celebridade instantânea, a ponto de conceder quatro entrevistas simultâneas, com um celular em cada orelha e dois telefones fixos ligados na sua mesa.

O interesse de milhões de estudantes, nada disso importava à mídia. Tratava-se agora de permitir ao Procurador se pavonear, desde que os objetivos políticos fossem atingidos.

A famas de exibicionista já o acompanhava desde 1991, quando tentou vetar um exame de avaliação dos professores do Estado pelo então governador Ciro Gomes. “Eu me lembro do Ciro me esculhambando e me chamando de exibicionista” vangloriava-se ele a repórteres. “Exibicionista, no caso, é o que desagrada quem está no poder para fazer justiça”, alardeava o pavão.

Transformado em herói por uma imprensa sem discernimento, dali por diante Costa Filho passou a atuar anualmente, valendo-se do poder de um cargo público para tentar derrubar a prova. Só parou quando a AGU (Advocacia Geral da União) ameaçou tomar providências legais contra ele.

Nos exames de ontem, o ENEM se consagra definitivamente. Foi o ponto central da cobertura da mídia, com portais montando projetos especiais para acompanhamento da prova. Nenhuma autocrítica, nenhum reconhecimento aos autores de uma política pública excepcional.

A prova de ontem chegou ao requinte de montar salas especiais com provas especiais e acompanhamento de especialistas para alunos com deficiência intelectual. Quem sabe disso? Apenas parentes e amigos de famílias beneficiadas por esse aprimoramento do ENEM.

O país está se civilizando. Mas as manchetes são aliadas da barbárie.

Fonte

 

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Impeachment já!

Dener Giovanini

05 novembro 2014 | 10:25


O Brasil não pode ter um presidente governando o país sob o manto da desconfiança. Não podemos – e nem devemos – aceitar que o mandatário da nação esteja cercado por suspeitas que resvalam no cerceamento do trabalho da imprensa e no favorecimento de aliados através da construção de obras suspeitas.

Também não podemos aceitar que os “cabeças” do partido, que hoje ocupa o poder, tenham seus nomes transitando em diversas Varas Judiciais por meio de processos recheados com suspeitas de corrupção, superfaturamento de obras e outras acusações até mais pesadas.

Um governo que é eleito com uma pequena margem de votos sobre o concorrente e, o mais grave, através de urnas eletrônicas facilmente manipuláveis e fraudadas, não tem nenhuma legitimidade para exercer o seu mandato.

O Brasil não pode se transformar no quintal de meia dúzia de países que querem impor seu estilo de vida através de suspeitos “acordos de cooperação internacional”.

Chega! Basta!

Queremos o Impeachment de Aécio Neves já!

Os leitores que chegaram até aqui, provavelmente acharam que eu estava me referindo à presidente Dilma Rousseff. Outros,  nem se deram ao trabalho de ler alguns parágrafos a mais. Pelo título e pelas primeiras linhas, já devem ter se entusiasmado o suficiente para sair correndo a compartilhar esse artigo nas redes sociais.

Os argumentos que expus no início desse texto, com certeza seriam utilizados pelos extremistas da esquerda, caso Aécio Neves tivesse vencido as eleições. Afinal, não faltaram na campanha presidencial, acusações sobre a perseguição a jornalistas em Minas Gerais, construção de aeroportos privados, mensalões mineiros, Metrô paulista e até acusações mais, digamos, escandalosas. Hoje estaríamos vendo muitas bandeiras vermelhas saindo às ruas, em manifestações “democráticas”, exigindo auditoria das urnas e pedindo a cabeça do eleito.

Caso o cenário descrito acima se concretizasse, eu aqui estaria cerrando fileira ao lado de Aécio Neves – da mesma forma como faço hoje com a presidente Dilma – defendendo sua legitimidade e criticando aqueles que, por não se conformarem com a derrota, exigem um terceiro turno, seja lá o que isso signifique na mente dessa gente.

Quem vai às ruas gritar pelo impeachment ou pedir uma intervenção militar (Golpe sim! Não existe intervenção militar que não seja sinônimo de golpe ou ditadura), está no seu direito democrático de exercer a sua cidadania. E também está no dever de aceitar criticas daqueles que – como eu – rejeitam categoricamente esse tipo de comportamento.

As tais manifestações “pacíficas” (mesmo capitaneadas por gente que berra no trio elétrico exibindo pistola na cintura) ou por artistas que se esforçam para homenagear Bin Laden, entram para o nosso folclore político apenas como mais um gesto daqueles que buscam o protagonismo político à custa de uma exibição pública vergonhosa, no estilo meu nome é Enéas.

Dessa turma também faz parte o cidadão que, graças à internet e sua meia dúzia de seguidores, sente-se empoderado ao ponto de agir como um especialista em Ciências Políticas. Ele faz previsões catastróficas sobre o futuro do Brasil. Imagina que ano que vem seremos um país vivendo sob uma ditadura comunista, onde todos vestirão uniformes cinzas e saudarão o grande líder Castro. Sua especialidade é tecer teorias conspiratórias e espalhá-las como um fato consumado.

Esse militante desmiolado trata Dilma e Lula como se fossem a foice e o martelo. É incapaz de enxergar a realidade como ela é.

Durante os oito anos de mandato do presidente Lula e os quatro da presidente Dilma, jamais, em tempo algum, existiu qualquer ação ou iniciativa que mostrassem desprezo pela democracia. Ao contrário. Lula poderia, se quisesse, enviar ao Congresso Nacional uma Emenda Constitucional que lhe garantisse um terceiro mandato. Estaria eleito. Não o fez por que é um democrata. Dilma disputou duas eleições que foram pautadas pela livre cobertura da imprensa e com total garantia dos direitos do eleitor. De onde então vem essa teoria da cubanização, do bolivarianismo?

Talvez a psiquiatria explique.

A verdade é que algumas pessoas gostam de jogar nas costas do governo os seus próprios fracassos, achando que uma eleição irá mudar suas vidas da água para o vinho. Repetem de quatro em quatro anos o ritual do Ano Novo, acreditando que, por causa de uma data no calendário, a sua vida dali em diante será diferente. No primeiro dia de janeiro descobrem que tudo continuou igual e, a partir daí, passam a culpar o governo pela infelicidade que reina em seus lares, pelo seu salário ruim ou pelo seu fracasso como ser humano. Afinal, alguém tem que assumir a culpa das limitações.

Diante de tanta necessidade de encontrar um bode expiatório, o frustrado mantém sempre à mão um leque de opções. “Fizeram macumba para mim” e “tem um encosto que me persegue” são as mais comuns. Mas em época de eleições não dá outra: “a culpa é da Dilma, é do PT”!

Raros são aqueles que, de fato, demonstram uma verdadeira preocupação para com o próximo ou para com o destino do país.

Boa parte dos que bradam por democracia são os primeiros a se incomodarem, quando gente que não pertence a sua “classe”, passa a dividir o mesmo espaço.

Muitos dos que clamam por igualdade são os primeiros a procurarem um jeitinho de favorecer um parente com a ajuda de um amigo político. São os mesmos que cospem no chão, jogam lixo nas ruas, subornam o guarda de trânsito ou, ainda, que insistem em entrar no elevador mesmo sabendo que ele está com a capacidade esgotada.

A internet acabou virando um palanque para essa gente que se acha “diferenciada”, importante, esclarecida e politicamente engajada. Elas querem iluminar o mundo com a sua luz de vagalume.
Ainda bem que o Brasil verdadeiro não é, nem de longe, a republiqueta que está em suas mentes.

Alguns líderes do PSDB agiram corretamente ao dar um passa fora nessa turma, ao afirmarem que não concordam e não endossam discursos antidemocráticos vindos de mentes excretoras ao gosto de Levy Fidelix.

Dilma Rousseff foi legitimamente reeleita e tem grandes desafios pela frente. Os brasileiros que, verdadeiramente batalham por uma vida melhor, não podem desejar outra coisa que não o sucesso de seu governo. É assim que se fortalece a democracia. É assim que o Brasil precisa continuar. Sem encostos.





Investimento no Porto Mariel faz sentido

Há vantagens para empresas brasileiras na execução do projeto e oportunidades estratégicas. Mas isso não elimina a necessidade de transparência no apoio a Cuba 
 
por
 
 
É de se estranhar que o Brasil tenha se envolvido tão fortemente na modernização e ampliação do Porto Mariel, em Cuba. Com uma economia socialista, o que o Brasil tem a fazer lá, em um ambiente ainda de embargo econômico por parte dos Estados Unidos? Neste caso, o interesse estratégico do país pesou mais — à parte simpatias ideológicas —, e não só de médio e longo prazos: a reconstrução do porto se tornou boa oportunidade de negócio para empresas brasileiras. Com o velho modelo socialista esgotado, o governo de Raúl Castro começa a ter uma visão mais pragmática sobre a economia. A experiência chinesa certamente contribui para quebrar convicções arraigadas do aparelho de estado cubano e, sem alternativa, a ilha caribenha passa a enxergar o mercado internacional como única saída para impulsionar sua economia.
 
Cuba não conta com variedade significante de matérias-primas e nem é um país industrializado. Mas tem uma posição geográfica privilegiada, que, no futuro será de grande importância. Mariel é o porto caribenho mais próximo da Flórida e se encontra a apenas 45 quilômetros de Havana, capital de Cuba, que concentra mais de 20% da população do país.
 
O investimento no porto é de quase US$ 1 bilhão e só faz sentido porque em torno dele surgirá uma zona econômica especial,, voltada basicamente para exportações. O Brasil tem uma participação ainda pouco significativa nos mercados caribenho e da América Central. Mariel é um caminho para que empresas brasileiras se instalem nessa zona econômica especial e processem produtos destinados a esses mercados, especialmente os de alta tecnologia, que utilizarão muitos insumos inexistentes em Cuba (e que, por isso, terão diferentes origens, fazendo com que o porto tenha papel central em todo esse projeto). A proximidade com o novo Canal do Panamá também é um fator a se considerar, para chegada aos mercados situados no Pacífico. 
 
As obras no porto são basicamente financiadas pelo BNDES. Do orçamento inicial de US$ 957 milhões, US$ 802 milhões foram financiados pelo Brasil. No entanto, desse valor, o equivalente a US$ 800 milhões foram gastos na contratação de serviços e de equipamentos produzidos no Brasil, o que gerou cerca de 20 mil empregos no país, sem contar com os postos de trabalho criados em Cuba. A modernização e ampliação de Mariel estão ocorrendo conforme o previsto, o que levou o Brasil a negociar a liberação de mais um financiamento de US$ 200 milhões para Cuba.
 
O porto responde pela maior parte do total de financiamentos (US$ 1,6 bilhão) concedidos pelo Brasil a Cuba. A pergunta é se não há risco de calote. Mesmo com todos seus problemas, Cuba permanece em dia com o Brasil, e no caso específico de Mariel, houve a preocupação de vincular os pagamentos diretamente às receitas obtidas pelo porto. Tudo isso não elimina a necessidade de haver transparência em torno dos empréstimos brasileiros.


 

As polarizações não dão conta das mudanças de imaginário. Entrevista especial com Ivana Bentes

 

“A primeira coisa que chama atenção na eleição presidencial de 2014, que deu a vitória apertada à presidente Dilma Rousseff, é a profunda ingerência de uma Mídia-Estado na cultura política”, afirma a pesquisadora.
 

Foto: www.brasilescola.com
Os discursos de que o Brasil está dividido pós-eleições presidenciais, por conta da diferença de 3% entre a presidente reeleita e o candidato de oposição, não explica a eleição de 2014, avalia Ivana Bentes em entrevista à IHU On-Line. “Não podemos falar de um Brasil partido em dois pós-eleições, mas de uma constelação de interesses e desejos que expressam grupos e segmentos múltiplos”, enfatiza. Segundo ela, “a partição binária não serve a ninguém. É mais um ‘meme’ e uma narrativa redutora, polarizadora e conservadora. O mapa das eleições é muito mais mesclado e instável que o ‘muro’ que querem erigir entre nordestinos e sulistas, ou a polarização entre dois partidos, PT e PSDB”. Apesar de a leitura de um país dividido ser equivocada na opinião da pesquisadora, ela frisa que a polarização e a “narrativa do embate não desapareceu”, tampouco “os conflitos de classe”. Embora a divisão apareça em alguns pontos, “essa dualidade não dá conta, em termos simbólicos, das mudanças que o país sofreu e da mobilidade subjetiva dos muitos”, enfatiza.
 
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Ivana Bentes responde algumas das perguntas da IHU On-Line, com ênfase em uma análise do discurso tanto da mídia, que ela denomina de “Mídia-Estado”, quanto das redes sociais. “Durante algum tempo acreditamos que as redes sociais enterrariam revistas como a Veja, pois com uma mídia-multidão as denúncias seriais e campanhas podem ser desconstruídas com a velocidade e sagacidade dos muitos. Mas as redes também podem produzir e reproduzir o mesmo discurso de ódio, racismo, intolerância”, pontua.
 
Para ela, “é fato que o estilo Veja e o ‘ódiojornalismo’ acabaram contaminando parte das redes sociais (por galvanizar sentimentos e crenças enraizados em um ambiente profundamente desigual e conservador)”. Contudo, pontua a professora de Jornalismo, as redes, diferente de veículos como a Veja, “antecipam as crises e tratam dela com humor e escracho, podendo neutralizá-la ou diminuir seu estrago”.
 
Ivana explica o apoio dos movimentos sociais à reeleição de Dilma ao “reconhecimento (mesmo que tardio) dos temas das Jornadas de Junho de 2013, à crise da representação, à democratização da mídia, à centralidade da cultura na virada de imaginário e na mudança da cultura política”. A presença do ex-presidente Lula nas eleições, “de forma pragmática e simbólica”, também contribuiu para a reeleição da presidente Dilma e “recolocou o lulismo na linha de frente desta guinada à esquerda da campanha de Dilma”.
 
Pós-eleições, com a reeleição de Dilma, Ivana frisa que “é preciso fazer o embate com uma direita anacrônica que acha que estamos à esquerda demais e para uma esquerda que acha que ainda estamos muito à direita e que está ‘tudo dominado’. É preciso uma virada de imaginário para sair desses dualismos e qualificar a palavra mágica ‘mudança’ que atravessou todos os partidos e candidatos com sentidos distintos”.
 
Ivana Bentes é professora e pesquisadora da linha de Tecnologias da Comunicação e Estéticas do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. É doutora em Comunicação pela UFRJ, ensaísta do campo da Comunicação, Cultura e Novas Mídias. É coordenadora do Pontão de Cultura Digital da ECO/UFRJ.

Foto: arquivo pessoal
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual sua avaliação do resultado das eleições presidenciais deste ano?

Ivana Bentes - A primeira coisa que chama atenção na eleição presidencial de 2014, que deu a vitória apertada à presidente Dilma Rousseff, é a profunda ingerência de uma Mídia-Estado na cultura política, associada com arcaísmos e anacronismos de um pensamento conservador que atravessa os mais diferentes grupos e classes sociais. O resultado das eleições e os discursos de ódio que afloraram não se explicam simplesmente “partindo” o Brasil entre ricos e pobres ou muito menos entre regiões. É hora de entender a porosidade e penetrabilidade desses discursos duais de demonização do outro, minando um amplo campo social, e perceber novos imaginários emergentes.

Chegamos ao clímax de uma campanha eleitoral que reflete uma cultura de criminalização que produz uma ativa rejeição da política, apresentada cotidianamente em narrativas midiáticas que ficcionalizam as notícias e novelizam a política, com reiteradas associações da política e dos políticos com corrupção, ilegalidade, traições, intrigas. Uma memética negativa que afasta e despolitiza os muitos do que realmente está em jogo: interesses econômicos, especulação contra a vida, a privatização das riquezas, o moralismo e conservadorismo em que assujeitam minorias e diferenças.

A fábrica de fatos e a produção da opinião pública

Essa cultura do “ódiojornalismo” e o estilo Veja também aparecem na retórica dos articulistas e colunistas de diferentes jornais e veículos de mídia que formam hoje uma espécie de “tropa de choque” ultraconservadora (Arnaldo Jabor, Diogo Mainardi, Reinaldo Azevedo, Merval Pereira, Demétrio Magnoli, Ricardo Noblat, Rodrigo Constantini, são muitos), que alimentam uma fábrica de memes de uma ultradireita que se instalou e trabalha para minar projetos, propostas, seja de programas sociais, seja de ampliação dos processos de participação da sociedade nas políticas públicas, seja de processos de democratização da mídia e todo o imaginário dos movimentos sociais.

Essa demonização da política tornada cultura do ódio se expressa por clichês e por uma retórica de anunciação de uma catástrofe iminente a cada semana nas colunas dos jornais e que retroalimentam, com medo, insegurança, ressentimento, uma subjetividade francamente conservadora de leitores e telespectadores.

Se lermos os comentários das notícias e colunas nos jornais (repercutidos também nas redes sociais), vamos nos deparar com um altíssimo grau de discursos demonizantes, raivosos e de intolerância, à direita e agora também à esquerda. Trata-se de uma redução do pensamento aos clichês, memes e fascismo, extremamente empobrecedora, mas incrivelmente eficaz.

Essa pedagogia para os microfascismos e a educação para a intolerância podem ser resumidos na retórica que desqualifica e aniquila o outro como sujeito de pensamento e sujeito político, o que fica explícito na fala de alguns colunistas.

“As eleições têm um componente simbólico e de ‘narrativa’ que ultrapassa em muito qualquer racionalidade ou matemática eleitoral”

Um exemplo muito claro, inclusive no seu cinismo, é este trecho de uma coluna do Arnaldo Jabor de 28/10/2014, pós-eleições. Com uma argumentação pueril e assujeitante que coloca eleitores, nordestinos e nortistas, pobres como “absolutamente ignorantes sobre os reais problemas brasileiros”, em um cenário pós-eleições em que “nosso futuro será pautado pelos burros espertos, manipulando os pobres ignorantes. Nosso futuro está sendo determinado pelos burros da elite intelectual numa fervorosa aliança com os analfabetos”.

Numa coluna anterior, de 14/10/2014, podemos ver como funciona essa pedagogia calcada na construção de memes e clichês, a obsessão anacrônica por Cuba e agora pelo “bolivarianismo” e o caráter ameaçador que se dá a qualquer política pública contemporânea e modernizante que tenha como horizonte a participação social:

“— Qual é o projeto do PT? — Fundar uma espécie de bolivarianismo tropical e obrigar o povo a obedecer ao Estado dominado por eles. — Que é bolivarianismo? — É um tipo de governo na Venezuela que controla tudo, que controla até o papel higiênico e carimba o braço dos fregueses nos supermercados para que eles só comprem uma vez e não voltem, porque há muito pouca mercadoria.”
Trata-se de metáforas primárias, mas capazes de se difundir velozmente em um “semiocapitalismo” para usar a expressão do ativista e pensador italiano Franco Beraldi, inspirada em Félix Guattari, que tem como base signos, imagens, enunciados que giram velozmente, viralizam, comovem. Essa é a base tanto do ativismo, da publicidade social, quanto do pensamento conservador. A questão é como desconstruir esses clichês e trabalhar para que essas mudanças em curso se massifiquem a ponto de se tornarem um novo comum.

De certa forma foi o que vimos em relação aos programas sociais. Não será possível desmontá-los e desqualificá-los como se imaginava, pois o acesso aos programas tem dois vieses: a entrada da chamada classe C ao mundo do consumo, como consumidores simplesmente, mas ao mesmo tempo uma politização do cotidiano, com a percepção de si como sujeito de direitos e com uma interface com o Estado que não se reduz ao negativo, carência e insuficiência de serviços.

A próxima desconstrução massiva da mídia se dará em torno das noções de “participação popular”, “liberdade de expressão” e “controle social”, buscando construir uma valoração negativa e associá-las a um projeto autoritário de “menos democracia” e de restrição de direitos, quando se trata justamente de redistribuir poder simbólico e capital midiático pelos muitos. Uma operação que está em curso e que busca articular: políticas de regulação da mídia com “censura” de conteúdos.

IHU On-Line – Como avalia as discussões políticas via redes sociais?

Ivana Bentes - Os discursos de ódio que assolam o país (uma construção em curso desde 2002 e alimentada midiaticamente no caso do antipetismo) contaminaram também parte da militância governista e de forma difusa contaminaram as redes e as ruas em embates reais e simbólicos. Sem dúvida, trata-se do resultado de um processo em curso que passa pela judicialização da política, mas que inclui muitas outras indignações, inclusive as das Jornadas de Junho de 2013 contra os partidos e os processos verticais de governos e Estados. Um discurso represado contra a corrupção, que foi explorado à exaustão pela mídia e que desde as Jornadas de Junho surge no que tem de libertador, mas também de hipócrita e moralista, um discurso de viés conservador.
A Mídia-Estado produz e gerencia subjetividades, excitando e medindo forças com a sociedade, com as redes, com muitos conectados e desconectados e teve, nessa eleição, um caráter, eu diria que até épico, uma inflexão e temperatura que intensificou a percepção dos muitos do que podemos chamar de midiocracia, o governo das mídias.
 
O jornalismo padrão Veja como paradigma
Se analisarmos nessa eleição o grau de ingerência das mídias e o que chamei, na falta de uma palavra melhor, de “ódiojornalismo”, galvanizando microfascismos e comportamentos antidemocráticos, podemos entender os mecanismos de produção de crise. Foi o caso da intervenção da Veja, nessas eleições, entre outros acontecimentos que precisam de algum tempo para serem avaliados. Como pudemos acompanhar no projeto Manchetômetro, que mede o número e destaque de matérias negativas para os diferentes candidatos e o número de escândalos e seu tempo de exposição na mídia.

Nas análises da campanha presidencial de 2014, o site "Manchetômetro" chama atenção para o devir-Veja do noticiário brasileiro, com destaque para a Folha de São Paulo, para o que chamou de “Folha padrão Veja”, em que “Dilma foi campeã de chamadas e manchetes negativas por quase todo período de campanha”.
 
Na ecologia das mídias que se retroalimentam, a Folha chegou a publicar um material noticiando a ausência de repercussão da capa da Veja sobre as acusações do doleiro a Lula e Dilma. “Jornal Nacional não menciona reportagem”, de 25/10/2014.

“Acho de um equívoco sem tamanho o discurso antipetista que quer a todo custo ‘o PT fora do poder’, mas também os que defendem a todo custo o governo”

Sabemos que uma revista como a Veja é motivo de piada em todos os Cursos de Comunicação do país, não apenas pelo nível de distorção e editorialização de suas capas, mas como exemplo de um singular negócio. A moeda da Veja e de parte da mídia nunca foi o jornalismo, mas a "produção de crise" e sua capacidade de produzir instabilidade política e destruir reputações. Essa é sua única moeda: a ameaça de produção de crise e o restabelecimento da "estabilidade".

Durante algum tempo acreditamos que as redes sociais enterrariam revistas como a Veja, pois com uma mídia-multidão, as denúncias seriais e campanhas podem ser desconstruídas com a velocidade e sagacidade dos muitos. Mas as redes também podem produzir e reproduzir o mesmo discurso de ódio, racismo, intolerância.

É fato que o estilo Veja e o “ódiojornalismo” acabaram contaminando parte das redes sociais (por galvanizar sentimentos e crenças enraizados em um ambiente profundamente desigual e conservador). Vemos hoje o leitor típico de Veja multiplicado e repetindo ou produzindo esse jornalismo de ódio, numa subjetividade denuncista/fascista. Ao mesmo tempo, para além da desconstrução da retórica "fait divers" da Veja e desconstrução do denuncismo como "negócio", as redes antecipam as crises e tratam dela com humor e escracho, podendo neutralizá-las ou diminuir seu estrago.

Foi o que vimos nas capas antecipadas nas redes parodiando a capa denúncia da Veja contra Dilma e Lula, na sexta-feira dia 24 de outubro. Utilizaram o humor como anticorpos para uma denúncia bomba produzida para desestabilizar as eleições. Trata-se da expressão da inteligência coletiva, que neutraliza o truque conhecido e aguardado derretendo a suposta "bala de prata" dessas eleições antes mesmo de ela ser disparada.

A chegada nos Trending Topics - TTs da hashtag ‪#‎deseperodaVeja‬‬‬‬‬ denunciando e desconstruindo a denúncia do doleiro contra Dilma e Lula teve um efeito impactante e de amortecimento do golpe midiático. A resposta de Dilma Rousseff no seu programa eleitoral denunciando a manobra, o direito de resposta no próprio site da Veja, obtido junto ao TSE, a não repercussão da capa da Veja no Jornal Nacional da sexta-feira formaram uma onda de repúdio e descrédito em torno da operação golpista, notícia que não deixou de ser superexplorada pelos adversários de Dilma Rousseff.

Ainda no campo da análise dos discursos, é preciso dizer que todo o poder de fogo de Veja se concentra na capa, peça over editorializada e peça em que investem todo o impacto emocional, estético (anunciam previamente nas redações e contam com a cumplicidade do restante da mídia para repercuti-la mimeticamente). No episódio dessas eleições, a capa se resume a uma frase de um doleiro pinçada de um processo.
 
Ação e Reação. O escracho contra a sede da Abril
Dentro da revista, o conteúdo da capa é pífio sempre. Tudo se resume a três linhas: “O Planalto sabia de tudo — disse Youssef. — Mas quem no Planalto? — perguntou o delegado. — Lula e Dilma — respondeu o doleiro. (....) O doleiro não apresentou — e nem lhe foram pedidas — provas do que disse”, conclui a “reportagem”, explicitando o próprio blefe. Aposta-se em uma capa editorializada e em uma frase não comprovada para tentar desestabilizar uma eleição. A maioria das pessoas também só lê as manchetes das primeiras páginas, a disputa se dá aí, pois atuam formando os memes negativos, associando pessoas, partidos e ações a crimes, ilegalidade, insegurança. A estratégia se repete a ponto de não mais surtir o efeito esperado.
 
Ainda na sequência do golpe malsucedido de Veja, vimos da reação com uma ação de “escracho” da União da Juventude Socialista – UJS, com pichação e lixo jogado na fachada da Editora Abril. Uma ação que poderia ter custado a eleição de Dilma, por confrontar diretamente a mídia e criar uma solidariedade com a Veja. O fato de o TSE ter dado direito de resposta à Dilma neutralizou parte do impacto negativo do golpe e contragolpe. Acho legítimas as ações de escracho, revolta e indignação que produzem danos simbólicos, um grande debate nas Jornadas de Junho de 2013 que envolveu as ações Black Blocs e que vemos que vieram para ficar na linguagem das ruas. Mas a ação do escracho na porta da Abril, legítima, foi no limite do “timing” e poderia ter selado uma reação furiosa em defesa das corporações de mídia, o que felizmente não aconteceu.
 
O Jornal Nacional da Globo fez a crônica da Veja, da UJS e do TSE de forma razoavelmente equilibrada no dia 25/10, véspera das eleições, para quem esperava o “apocalipse” (mais um golpe de mídia) e um alinhamento automático da Globo com a Veja nesse episódio. Dilma manteve a vantagem na pesquisa do Ibope e ganhou as eleições por uma diferença apertada de pouco mais de três milhões de votos. Mas não antes de enfrentar um último boato nas redes: que o doleiro delator, que passou mal em meio a tantas reviravoltas, tinha sido envenenado pelo PT e agonizava em um hospital! Chegamos num nível bem alto de novelização dos fatos, um tipo de narrativa com vilões, mocinhos, vítimas e algozes que tem enorme penetração no imaginário e nas redes, que funcionam como veneno e antídoto, desconstruindo e produzindo memes e clichês.

Esse tipo de acirramento na disputa política introduz uma lógica dual e de confronto violento, pessoal, engajado e mobilizador, pois a “épica” e narrativa criada traz um componente de despolitização, que desloca a argumentação, o embate de ideias, para um confronto meramente afetivo/emocional, como nos jogos de futebol e comportamento das torcidas organizadas; o que aproxima ainda mais a política da ficção, do teleshow da realidade e da lógica melodramática das narrativas novelescas, populares no Brasil. Como politizar a comoção e os afetos? Esse me parece um desafio para o ativismo e para a formação política.

O debate em torno da democratização dos meios de comunicação chegou a um limite no Brasil. Temos a Lei de Meios na Argentina, avanços no debate no Uruguai, no México. No Brasil, a Reforma da Lei Geral de Comunicações segue obstruída mesmo sendo uma demanda e reivindicação de todos os movimentos sociais e culturais. Com a massificação das redes sociais, o midiativismo, a proliferação de pontos de mídia e de uma miríade de contradiscursos, o enxameamento da mídia-multidão começamos a experimentar uma outra deriva, mas insuficiente se não se auto-organizar e se constituir como uma outra cultura de redes, capaz de reagir e neutralizar os microfascismos cotidianos.
 
IHU On-Line – A reeleição apertada de Dilma demonstra um país dividido? 
Ivana Bentes - O embate agônico entre “torcidas” partidárias resultou ao final dessas eleições em um recorrente discurso da partição, do muro, do dualismo, do binarismo, de um país conflagrado. Esse discurso do Brasil “partido” pós-eleições não explica essa eleição de 2014. Vimos pessoas que migraram do ativismo e das mobilizações de Junho de 2013 ao voto em Aécio Neves (inclusive intelectuais de renome que apoiaram Marina Silva no primeiro turno e seguiram a candidata apoiando Aécio), mas particularmente os que estavam nas ruas por uma indignação difusa contra o sistema representativo e os partidos e que conectaram o sentimental de “mudança” com o marketing da mudança do candidato do PSDB. Uma associação que Marina Silva capitalizou no primeiro turno, com a mesma ambivalência.
 
Vimos uma população que criticou as ruas por produzirem crise votar em Dilma, por medo e receio de que as manifestações de Junho fossem um complô da direita para desestabilizar o governo. Uma leitura equivocada da radicalidade e insurgência dos desejos. Vimos a oposição (em geral fratricida) formar um campo de esquerda solidário sustentando as encostas para evitar a enxurrada conservadora que desce destruindo o construído. Destacamos aqui o apoio de lideranças do PSOL, como Marcelo Freixo, eleito com uma votação histórica de 350.408 votos e Jean Wyllys, que reivindicou um compromisso da candidata Dilma com as questões LGBT e com as minorias e populações indígenas.
 
Vimos uma real politização da disputada Classe C (a classe dos “batalhadores” sem partido, ou desorganizados) se posicionando claramente em defesa das suas conquistas, refletidas no dia a dia. Vimos essa mesma classe C identificada com os valores conservadores do racismo, preconceito, moralismo.
 
Vimos a expressão assustadora de uma classe média raivosa e anacrônica, repetidora dos clichês mais primários construídos pela Mídia-Estado. Um “ódio ao PT” identificado como ódio aos pobres, nordestinos, etc. Vimos a defesa da elite dos seus privilégios e uma esquerda perguntando “onde erramos”? Vimos os que se abstiveram, anularam e se retiraram taticamente do jogo, por exaustão, recusa, repúdio das regras do jogo.
 
Não podemos falar de um Brasil partido em dois pós-eleições, mas de uma constelação de interesses e desejos que expressam grupos e segmentos múltiplos. O trabalho, depois de um intenso embate, é potencializar e politizar, organizar e construir movimentos, coletivos, organizações, bases menos maniqueístas e dualistas. Redistribuir riquezas e não aprofundar o fosso.
 
A partição binária não serve a ninguém. É mais um "meme" e uma narrativa redutora, polarizadora e conservadora. O mapa das eleições é muito mais mesclado e instável que o "muro" que querem erigir entre nordestinos e sulistas, ou a polarização entre dois partidos, PT e PSDB. A narrativa do embate entre “ricos e pobres” não desapareceu, e nem os conflitos de classe, mas essa dualidade não dá conta em termos simbólicos das mudanças que o país sofreu e da mobilidade subjetiva dos muitos.
Discursos

Sobre a retórica presente nos discursos de Aécio Neves, destacamos além da captura (mesmo que marqueteira e superficial) do legítimo desejo de mudança e uma equiparação entre “mudança” e “alternância de poder”, e ainda mudança e futuro. Mas o batido chavão do candidato que olha para o “futuro” e se apresenta como seu fiador não convenceu uma parte do eleitorado que votou com base na sua percepção do presente e sem fantasiar ou imaginar futuros alternativos radicais em relação aos programas e experiências bem-sucedidas.

Qual o lastro de "mudança" e "futuro" nas propostas e projetos apresentados por Dilma? Esses 12 anos fizeram história e tem um presente urgente e um horizonte, um projeto em disputa. O futuro, na campanha de Dilma, surge como um presente estendido e turbinado, melhorado. Enquanto os eleitores de Aécio Neves votaram em programas que desaprovam e combatem ativamente (Bolsa Família, Prouni, cotas), a partir de argumentos insustentáveis (bolsa-esmola, meritocracia, etc.) e que Aécio Neves afirmava que iria "continuar" para agradar aos demais eleitores, sem nenhuma outra proposta alternativa aos programas. Com o agravante de o PSDB ter tentado desqualificar todos os projetos sociais do governo. Estranha equação!

IHU On-Line – Que avaliação faz dos movimentos sociais nessas eleições, inclusive daqueles que criticaram o governo e acabaram por apoiar a reeleição de Dilma?

Ivana Bentes - O que vejo de mais positivo nesta eleição foi o retorno dos movimentos sociais e culturais na disputa do projeto do governo, com uma multidão que, mesmo insatisfeita, foi para as ruas. A pressão para uma guinada à esquerda e a retomada de políticas interrompidas resultou na entrada de Juca Ferreira na coordenação do Programa de Cultura de Dilma. Em torno dele formou-se uma rede que colocou a presidente em diálogo (em atos, comícios, cartas, declarações e posicionamentos) com a pauta trazida por jovens das periferias, do hip hop, do funk, do passinho, com projetos sociais e culturais vindos das favelas; que recolocou na cena o debate em torno dos Pontos de Cultura, da banda larga, da cultura digital, da criminalização da homofobia, da Reforma Política.

O reconhecimento (mesmo que tardio) dos temas das Jornadas de Junho de 2013, a crise da representação, a democratização da mídia, a centralidade da cultura na virada de imaginário e na mudança da cultura política, me parecem que efetivamente impactaram de forma decisiva para o engajamento e a ida de militantes, ativistas, participantes de uma frente de esquerda (PT, PSOL, PCdoB, etc.) que chegaram não apenas com um “voto crítico”, mas com apoio e capital simbólico e de credibilidade (MTST, MST, Reitores de Universidades públicas, professores, cineastas, Pontos de Culturas, médicos, cotistas, etc. que se expressaram em centenas de manifestos).

De forma pragmática e simbólica, a presença do ex-presidente Lula nessas eleições, subindo em palanques e atos, recolocou o lulismo na linha de frente dessa guinada à esquerda da campanha de Dilma. Lula, mais do que ninguém sabe que só nos resta a virada de imaginário e reconhecer que sem uma reaproximação com as ruas, sem as bases e o diálogo com os movimentos sociais e culturais, não tem PT e não tem mística que segure os retrocessos com um Congresso tão conservador que reelegeu Bolsonaro e Feliciano e uma eleição que deu ao PMDB o governo de sete estados, contra cinco do PT e cinco do PMDB.

Lula apontou nas suas falas o que vimos a presidente reeleita expressar no seu discurso: “Dilma precisa sair do isolamento nos próximos quatro anos e se reaproximar dos políticos, dos empresários e dos movimentos sociais". Cabe ainda destacar a carta divulgada pela presidenta Dilma aos indígenas na sua campanha: "Carta aos Povos Indígenas do Brasil", em resposta à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - APIB, se comprometendo com pautas e questões trazidas por lideranças indígenas. Trata-se de um dos pontos mais críticos do seu governo e que envolvem embates com as forças mais retrógradas deste país: "Hoje, todos sabemos, existem desafios na esfera jurídica para podermos avançar na demarcação das terras indígenas no país, principalmente nas regiões Centro-Oeste, Sul e Nordeste. Temos que enfrentar e superar estes desafios, respeitando a nossa Constituição".

Os canais ficaram obstruídos nos últimos anos, os estragos e erros foram grandes em alguns campos, como o da questão indígena e o debate ambiental. É um enorme desafio dos movimentos e do governo, que depende de articulação e pressão.

A questão da Cultura é decisiva porque no “semiocapitalismo”, o capitalismo cognitivo, capitalismo que tem como valor a informação, a comunicação, os afetos, o modo da produção cultural (a precariedade, a informalidade, a autonomia) são as próprias formas do trabalho contemporâneo, as formas gerais do trabalho. Nesse sentido, a cultura hoje é um processo transversal que impacta nas formas de produção de valor em todos os demais campos.
 
Podemos, partindo da cultura e do MinC, por exemplo, repensar questões decisivas como a valorização, apoio, sustentabilidade dos Pontos de Cultura, Pontos de Cultura Indígenas, ações de formação dos movimentos urbanos, novas redes de produção audiovisual, de mídia, dos povos tradicionais, cultura digital, etc. É um erro o governo não olhar para esse campo como estratégico, como lugar de desenvolvimento, produção de valor e radicalização da democracia. Cultura não é mais um “setor”, é um processo transversal e decisivo.

“A ação do escracho na porta da Abril, legítima, foi no limite do ‘timing’ e poderia ter selado uma reação furiosa em defesa das corporações de mídia, o que felizmente não aconteceu”

IHU On-Line - Recentemente a senhora postou um texto que iniciava com a seguinte declaração: “Eu voto porque somos ingovernáveis”. O que subentende nessa afirmação?
Ivana Bentes - Não vejo contradição nem oposição aos processos que levam das ruas às urnas e vice-versa, são complementares. Por isso temos que votar e lutar. Somos ingovernáveis, no sentido de que o processo representativo, as eleições, não podem ser o objetivo e nem o ápice do processo participativo. As redes são velozes e instituíram uma outra temporalidade e polifonia na política. Precisamos saber navegar e tomar decisões com base na ruidocracia. Os muitos tornaram-se visíveis e querem participar da vida política.

Essa participação pode ser pelas urnas, mas pode ser pelas ruas e redes também, de forma autonomista, por que não? Caminhamos nas redes e movimentos para a organização autogestionada, a organização de ação direta. Nesse sentido, a experiência de intensa participação nas redes sociais massifica, dissemina, difunde, prepara para a democracia direta, plebiscitária, em tempo real, que amplia o poder de decisão e intervenção dos muitos. Trata-se de uma mudança intensiva, de intensidade na participação, que a meu ver não tem volta.

O pânico da participação, de um Congresso e Parlamento em grande parte anacrônico e conservador, é sintoma da crise dos intermediários que assolou diferentes campos. Crise da intermediação, quando milhares de pessoas passam a exercitar a governança nas redes, da mesma forma que buscam processos desintermediados na produção cultural (crise das gravadoras, editoras, disputa nas redes com as mídias corporativas fordistas) e ascensão de uma cultura de redes que tem como horizonte a autonomia e a liberdade (“faça você mesmo”), a conectividade e o coletivo como valor.

Fica claro nessas eleições a crise da passagem entre modelos distintos. A cultura política baseada na democracia representativa (que não se esgotou totalmente, mas emerge na sua insuficiência) e a cultura de redes. O sintoma do anacronismo na política passa pela tentativa de criar estados de exceção, como o insistente golpismo da direita, pedindo "impeachment" de Dilma, antes mesmo de a eleição acabar e um estado permanente de crise, “amanhã será pior!” A antecipação continuada de crises produz medo e incertezas, constrange e despotencializa.

Temos exemplos concretos de práticas midiáticas de antecipação e produção de crise e instabilidade como controle. Lembro dos seres sensitivos que antecipam crimes no filme Minority Report. No Brasil foram desbancados pelos seres que antecipam golpes. Antes mesmo da reeleição da presidente Dilma, Merval Pereira, na sua coluna de O Globo de 24/10/2014, já pedia o seu "impeachment" por possíveis crimes futuros! Merval trabalha e cava para achar as "condições para incluir a atual e o ex-presidente em um processo criminal". E ameaça, "nesse caso, o impeachment da presidente será inevitável". Como disse sobre a Veja e serve para O Globo, a moeda da mídia é a ameaça, a chantagem, a produção de instabilidade e a produção de crise. Jornalismo é apenas o nome do genérico que embala o real negócio.

Mas as bordas conectadas balançam as redes e desestabilizam os velhos centros de poder. Os pré-cogs, os sensitivos da democracia, também visualizam futuros alternativos e algumas tags inspiradoras que neutralizam os videntes golpistas: Lei de meios, Lei Geral de Comunicações, Direito de Resposta, Regulação da Mídia, Pontos de Mídia Livre, Cultura de Redes e a Democratização das verbas publicitárias do próprio governo, dinheiro público investido nas grandes corporações de mídia e que poderia fortalecer a nova ecologia midiática das redes.

Estamos falando de um Estado-Rede, aberto aos movimentos e às críticas; é hora de se pensar em grandes frentes parlamentares de defesa de pautas e projetos, independente de partidos ou de eleição, o que importa é organizar e fortalecer os movimentos e conseguir vitórias públicas para os muitos. Os que foram às ruas para eleger a presidenta Dilma podem voltar às ruas para exigir essa virada de imaginário e participação.

Vimos nesse processo eleitoral a explosão dos discursos de ódio e entre eles o racismo, que, como mostra Foucault, é a condição sob a qual podemos exercer o direito de matar, de humilhar, de assujeitar, expondo ao risco determinados tipos de sujeitos e comportamentos, impondo a morte política, a expulsão dos territórios, a rejeição. Estamos vendo o crescimento desses discursos de ódio, com pedidos até de “intervenção militar” dos que perderam as eleições, numa tentativa de enfraquecer a democracia. O que é paradoxal e inédito pós-ditadura militar. Esses discursos de ódio, de racismo, não são, portanto, uma regressão e nem a sobrevivência de um passado arcaico, mas o produto de uma Mídia-Estado e de processos contemporâneos de biopoder e de gestão da vida.

IHU On-Line - Como avalia o discurso de uma nova política nas campanhas políticas?

Ivana Bentes - O debate e o discurso em torno de uma “nova cultura política” me parece decisivo, e Marina Silva soube capitalizar esse sentimento no primeiro turno, mas não o sustentou nem na teoria e nem na prática. Por isso sua explosão nas urnas nos remete a um tipo especial de "viral" que é o termômetro das comoções e afetos. Digo viral e mesmo um "meme" eleitoral pensando que as eleições têm um componente simbólico e de "narrativa" que ultrapassa em muito qualquer racionalidade ou matemática eleitoral. Marina tinha a melhor narrativa, da seringueira da floresta alfabetizada aos 17 anos que por um golpe do destino teve a candidatura à presidência jogada no seu colo. Mas não sustentou a candidatura e nem o debate para além da comoção memética, pois revelou ter os piores defeitos e incoerências de Dilma Rousseff em relação aos temas comportamentais como o aborto, as drogas, o casamento gay. Como poderia ser uma alternativa aos sem voto ou aos que foram para as ruas em junho de 2013 com esse perfil conservador no campo do comportamento?

A questão ambientalista que Marina trouxe também é decisiva e desejável para uma mudança de mentalidade política. Mas o seu projeto ambientalista não se definiu nem como antidesenvolvimentista. Suas pautas acabaram soando como simples remediação dentro de um "capitalismo verde", sem força e/ou desejo de nomear e fazer o embate com o agronegócio, por exemplo.

Obviamente que o governo Dilma foi pífio em relação às questões ambientais e indígenas. Mas a questão se estende aos demais partidos e projetos: Que tipo de governabilidade um partido como o PSB e mesmo o PSDB teria que negociar, já que a eleição presidencial não muda a configuração over conservadora do Congresso?

Marina acabou se revelando a expressão de uma elite empresarial e de certo "capitalismo verde", da "responsabilidade social", o equivalente aos ecobags, o consumidor verde que acha que já faz muito por não usar saco plástico descartável no supermercado ou por comprar a cenoura orgânica do Marcos Palmeira (também acho ótimo, mas insuficiente e paliativo), sem encarar a questão dos transgênicos, por exemplo, e do agronegócio.

Potências e limites do atual governo Dilma
O desenvolvimentismo fordista de Dilma e a sustentabilidade “flex” da economia verde dos aliados de Marina são igualmente insuficientes e insustentáveis. Um é a remediação e complemento paliativo do outro. A palavra "sustentabilidade" aponta para mudanças de modelo mais radicais e profundas que não apareceram em nenhum dos programas.

Ao mesmo tempo, a presidenta Dilma, mesmo atuando dentro da “velha política”, tem um legado e capital simbólico de mudança e ruptura agindo, um projeto inacabado e em curso. O que Lula/Dilma fizeram (contra toda uma elite midiática e conservadora, contra uma parte da classe média preconceituosa e voltada para seu umbigo) com o Bolsa Família, a expansão das universidades públicas, as cotas, teria de ser feito para neutralizar os ruralistas, para mudar o sistema de segurança e de mídia. Ou seja, intervir e mudar as velhas forças conservadoras, o que vem ao encontro do desejo de governança e participação.

O PT e o governo não souberam polinizar e espraiar o que de radicalmente novo trouxeram com essa participação e rede de movimentos em torno do projeto popular. Temos que entender que “nova política” não é uma palavra mágica, é lutar contra as forças mais pernósticas deste país: ruralistas, mídia corporativa e agentes da (in)segurança pública. O Estado brasileiro não vai desbaratar essas forças sozinho e nem "de dentro". Ou bem essas forças arcaicas de especulação contra a vida se tornam intoleráveis socialmente, ou não tem governo, partido ou candidato que as vença. Mas sem dúvida temos mais chances de fazer essa mudança a partir do campo da esquerda do que reafirmando os valores retrógrados de uma elite conservadora.

A “nova política” passa por essa indignação que marcou as Jornadas de Junho de 2013, passa pela crise da democracia representativa, mas não prescinde dela, passa pela demanda de participação e cogestão do Estado, mas também o fortalecimento de processos autonomistas, de autonomia e liberdade, de fabulação de mundos e de virada de imaginário.

O que entendo como “nova política” no Brasil não é só olhar para frente, mas instaurar processos de reparação, o que inclui também o que o governo Lula/Dilma teve coragem de fazer: aumentar o salário mínimo no Brasil (que a direita dizia que ia quebrar o país), fazer a PEC das empregadas domésticas, afrontando a Casa Grande na sua mentalidade escravocrata, dando existência política aos remanescentes dos quilombos, com o reconhecimento das terras quilombolas, aprovando a Lei Cultura Viva para os Pontos de Cultura e o Marco Civil para a Internet, entre tantas viradas políticas decisivas. Mas claro que isso não basta e é preciso construir futuros alternativos aos que temos hoje, diante da crise ambiental, indígena, crise de paradigmas e modelos.

A polêmica da participação social

A polêmica (induzida pela Mídia e pelos derrotados nas eleições presidenciais) criada em torno do decreto da Participação Social proposto pelo governo indica como os conservadores criam memes e clichês de neutralização dos avanços, colocando as mudanças necessárias dentro da configuração fantasiosa de um “bolivarianismo tropical” ou “golpe comunista”.

Tornar lei "participação" é o embrião para um Estado-rede aberto à cogestão da sociedade. Não podemos esquecer que no auge das manifestações e da crise de 2013, a presidente Dilma acenou com uma Constituinte para fazer a Reforma Política, e a mídia corporativa veio em peso acusar o governo de “venezuelização”, golpe, mudança das regras do jogo, e o governo recuou. Agora que reelegemos Dilma, os movimentos sociais têm que cobrar não só a Reforma Política, mas um real diálogo com os movimentos sociais. Os parlamentares que votaram contra o Decreto da participação são anacrônicos, entendem participação como “reserva de mercado” para os poucos representantes no Congresso.
 
É preciso ampliar a participação, mas enquanto a direita diz que estamos entrando na era do "bolivarianismo tropical" com Dilma reeleita, certa esquerda coloca todo e qualquer retrocesso na conta do governo, de forma igualmente redutora. A direita acreditando que representação é um "cheque em branco" que você assina nas eleições e lava as mãos. Certa esquerda fazendo o discurso da sacralização das ruas, como se, sozinhas, as ruas e movimentos pudessem derrotar as forças obscurantistas mais arraigadas que especulam contra a vida. A real é que não se trata de escolher entre as ruas ou as urnas, mas ruas e urnas e mais centenas de ações, práticas e movimentos autonomistas e autogestionados contra o retrocesso. São muitas as formas de participação. O Plano Nacional de Participação Social apenas consolida o que já estava previsto em parte na própria Constituição, como os conselhos populares.

“Agora que reelegemos Dilma, os movimentos sociais têm que cobrar não só a Reforma Política, mas um real diálogo com os movimentos sociais”

É preciso fazer o embate com uma direita anacrônica que acha que estamos à esquerda demais e para uma esquerda que acha que ainda estamos muito à direita e que está "tudo dominado". É preciso uma virada de imaginário para sair desses dualismos e qualificar a palavra mágica “mudança” que atravessou todos os partidos e candidatos com sentidos distintos.

O imaginário em torno da palavra mudança
Temos que nos apropriar e ressignificar o imaginário e desejo em torno das mudanças que tanto Marina Silva e depois Aécio Neves tentaram capturar, criando uma “nuvem” fluida e frouxa em torno dessa tag ou conectando mudança com um projeto político que é a vanguarda do atraso.
O que precisamos reafirmar é que as brechas e contradições existem dentro do próprio governo Dilma e devemos explorá-las. Não vejo como Dilma pode "continuar" sem mudar. Pois também ela se valeu do discurso da mudança.
 
O PT ainda é a mais completa tradução da bipolaridade esquizofrênica na política brasileira e que por isso mesmo está aberto às pressões, de todos os lados.
 
Quando Vladimir Safatle definiu Marina como uma "Margareth Thatcher da Floresta", achei exagero, mas é esse personagem político que Marina assumiu. A nova política de Marina acabou com seu apoio a Aécio Neves, ao meu ver, dilapidou parte do seu capital simbólico rápido demais. Mas as questões trazidas por sua candidatura não podem ser abandonadas, são reais e importantes.

Ao apoiar Aécio Neves, candidato derrotado nessas eleições, Marina cruzou uma fronteira delicada. Desagradou e de certa forma “traiu” parte dos que foram para as ruas em 2013 pedindo mudanças. Aécio Neves tentou capitalizar o sentimento e desejo de mudanças da forma mais conservadora, com um sentimento raivoso antipetista, pouco generoso, binário e redutor em relação ao passado. Nesse sentido, o “Muda Mais” de Dilma também ainda é apenas uma carta de intenções, mas se explicitou no discurso de vitória e logo depois, ao propor a Reforma Política, a criminalização da homofobia e a regulação da Mídia.

PT e PSDB

PT e PSDB têm projetos distintos, mas são dois projetos que incorrem em um erro comum e de boa parte da direita e da esquerda atual, a crença em um progresso infinito, aceleracionista e de esgotamento dos recursos naturais em nome do “desenvolvimento”, produzindo crises estruturantes: consumismo, crise ambiental, destruição de culturas e modos de existência que resistem a esses processos de assujeitamento da vida.

Ou seja, o desenvolvimentismo selvagem não é um problema da Dilma, é o "estado da arte" de parte da sociedade brasileira e global: consumismo desenfreado, especulação contra a vida, margem de lucros exorbitantes que passa por cima de culturas e direitos. Só uma forte pressão dos movimentos sociais quebra esse modelo. Só uma mudança de mentalidade vai expurgar essas forças de morte e desmandos arcaicos do país.

As questões continuam e não têm respostas fáceis. Temos que lutar para que o atual sistema partidário, inclusive o governo Dilma, incorpore as pautas e questões urgentes que emergiram nas ruas. Temos que sair do infantilismo político e purista que é o compromisso atávico com o inviável, pois a governança e a democracia direta vão brotar da remediação e ruptura com o atual sistema partidário.

Acho de um equívoco sem tamanho o discurso antipetista que quer a todo custo "o PT fora do poder", mas também os que defendem a todo custo o governo. Os governistas são um atraso para discutirmos, criticarmos e pressionarmos governos "de dentro" deles. Criticar e exigir mudanças não como inimigos, mas como aliados.

Votei em Dilma Rousseff porque acredito na possibilidade de tensionar seu governo por fora e por dentro. Quem precisa de políticas públicas não pôde se dar o luxo de arriscar mais retrocessos. Quem precisa de políticas públicas nos transportes, na saúde, banda larga, políticas para a juventude e para as minorias, votou na continuidade de um projeto que em 12 anos teve resultados concretos, como tirar o Brasil do mapa da fome — é muito e é muito pouco!

Aclasse C quer mais direitos e mais políticas públicas que potencializam a vida, potencializem a sua cultura e jeito de estar no mundo, não apenas ser consumidora, por isso a classe dos “batalhadores” (linda expressão que foi decisiva nessa eleição). A Marina falou para uma classe média e para uma elite liberal com pautas que Dilma subestimou. Aécio Neves despertou os microfascismos de toda sorte, numa reorganização do campo conservador no Brasil: ódio aos nordestinos, ódio e desqualificação da política, ódio aos petistas, ódio ao processo eleitoral. O legítimo desejo de mudança deve ser capturado para aprofundar os processos democráticos, e não interrompê-los, neutralizá-los.

Votei em Dilma Rousseff porque acredito que as ruas são ingovernáveis e temos que lutar contra a financeirização da vida, seja de onde for, e vejo que partindo da cultura pode-se reinventar o Brasil, transformando precariedade em potência. Não é fácil, dentro de um ambiente político hostil e cenário econômico difícil, mas o que nos move são as dinâmicas dessa própria luta que ressignificam o presente urgente e inventam futuros alternativos.