Qua, 14/10/2015 - 19:50 - Atualizado em 15/10/2015 - 07:14
O vazamento torrencial de depoimentos, a marcação cerrada sobre Lula,
o pacto incondicional com os grupos de mídia, a prisão de suspeitos até
que aceitem a delação premiada, essas e demais práticas adotadas pela
Operação Lava Jato estavam previstas em artigo de 2004 do juiz Sérgio
Moro, analisando o sucesso da Operação Mãos Limpas (ou mani pulite) na
Itália.
O paper "Considerações sobre a operação Mani Pulite",
de autoria de Moro é o melhor preâmbulo até agora escrito para a
Operação Lava Jato. E serviu de base para a estratégia montada.
Em sete páginas, Moro analisa a operação Mãos Limpas na Itália e, a
partir dai, escreve um verdadeiro manual de como montar operação similar
no Brasil, valendo-se da experiência acumulada pelos juízes italianos.
As metas perseguidas
Na abertura, entusiasma-se com os números grandiosos da Mãos Limpas:
"Dois anos após, 2.993 mandados de prisão haviam sido expedidos; 6.059
pessoas estavam sob investigação, incluindo 872 empresários, 1.978
administradores locais e 438 parlamentares, dos quais quatro haviam sido
primeiros-ministros".
Admite os efeitos colaterais, dez suicídios de suspeitos, vários
assassinatos de reputação cometidos na pressa em divulgar as informações
e, principalmente, a ascensão de Silvio Berlusconi ao poder.
Mas mostra as vantagens, no súbito barateamento das obras públicas
italianas depois da Operação. Principalmente, chama sua atenção as
possibilidades e limites da ação judiciária frente à corrupção nas
democracias contemporâneas.
A lógica política da Mãos Limpas
A lição extraída por Moro é que existe um sistema de poder a ser
combatido, que é a política tradicional, com todos seus vícios e
influências sobre o sistema judicial, especialmente sobre os tribunais
superiores.
O sistema impede a punição dos políticos e dos agentes públicos
corruptos, devido aos obstáculos políticos e “à carga de prova exigida
para alcançar a condenação em processo criminal”.
O caminho então é o que ele chama de democracia – que ele entende
como uma espécie de linha direta com a “opinião pública esclarecida”, ou
seja, a opinião difundida pelos grandes veículos de imprensa, dando um
by-pass nos sistemas formais.
“É a opinião pública esclarecida que pode, pelos meios institucionais
próprios, atacar as causas estruturais da corrupção. Ademais, a punição
judicial de agentes públicos corruptos é sempre difícil (...). Nessa
perspectiva, a opinião pública pode constituir um salutar substitutivo,
tendo condições melhores de impor alguma espécie de punição a agentes
públicos corruptos, condenando-os ao ostracismo".
O jogo consiste, então, em trazer a disputa judicial para o campo da mídia.
Análise de situação
Em sua opinião, os fatores que tornaram possível a Operação, alguns deles presentes no Brasil.
1. Uma conjuntura econômica difícil, aliada aos custos crescentes com a corrupção.
2. A abertura da economia italiana, com a integração europeia, que abriu o mercado a empresas estrangeiras.
3. A perda de legitimidade da classe política com o início das
prisões e a divulgação dos casos de corrupção. Antes disso, a queda do
“socialismo real”, “que levou à deslegitimação de um sistema político
corrupto, fundado na oposição entre regimes democráticos e comunistas”.
4. A maior legitimação da magistratura graças a um tipo diferente
de juiz que entrou nas décadas de 70 e 80, os “juízes de ataque”,
nascido dos ciclos de protesto.
O uso da mídia
Um dos pontos centrais da estratégia, segundo Moro, consiste em tirar
a legitimidade e a autoridade dos chefes políticos – no caso da “Mãos
Limpas”, Arnaldo Forlani e Bettino Craxi, líderes do DC e do PSI – e dos
centros de poder, “cortando sua capacidade de punir aqueles que
quebravam o pacto do silêncio”. Segundo Moro, o processo de
deslegitimação foi essencial para a própria continuidade da operação mani pulite”
A
arma para tal é o uso da mídia, através da ampla publicidade das ações.
Segundo Moro, na Itália teve “o efeito salutar de alertar os
investigados em potencial sobre o aumento da massa de informações nas
mãos dos magistrados, favorecendo novas confissões e colaborações. Mais
importante: garantiu o apoio da opinião pública às ações judiciais,
impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho
dos magistrados”.
Moro admite que a divulgação indiscriminada de fatos traz o risco de
“lesão indevida à honra do investigado ou acusado”. Mas é apenas um dano
colateral menor.
Recomenda cuidado na divulgação dos fatos, mas “não a proibição
abstrata de divulgação, pois a publicidade tem objetivos legítimos e que
não podem ser alcançados por outros meios".
Segundo Moro, “para o desgosto dos líderes do PSI, que, por certo, nunca pararam de manipular a imprensa, a investigação da “mani pulite”
vazava como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes de sua
confissão eram veiculados no “L’Expresso”, no “La Republica” e outros
jornais e revistas simpatizantes”.
Para ele, apesar da Mãos Limpas não sugerir aos procuradores que
deliberadamente alimentassem a imprensa, “os vazamentos serviram a um
propósito útil. O constante fluxo de revelações manteve o interesse do
público elevado e os líderes partidários na defensiva. Craxi,
especialmente, não estava acostumado a ficar na posição humilhante de
ter constantemente de responder às acusações e de ter sua agenda
política definida por outros”.
A delação premiada
Segundo Moro, a estratégia consiste em manter o suspeito na prisão,
espalhar a suspeita de que outros já confessaram e “levantar a
perspectiva de permanência na prisão pelo menos pelo período da custódia
preventiva no caso da manutenção do silêncio ou, vice-versa, de soltura
imediata no caso de uma confissão (uma situação análoga do arquétipo do
famoso “dilema do prisioneiro”)”.
Ou seja, a prisão – e a perspectiva de liberdade – é peça central
para induzir os prisioneiros à delação. Mas há que se revestir a
estratégia de todos os requisitos legais, para "tentar-se obter do
investigado ou do acusado uma confissão ou delação premiada,
evidentemente sem a utilização de qualquer método interrogatório
repudiado pelo Direito. O próprio isolamento do investigado faz-se
apenas na medida em que permitido pela lei”.
Moro deixa claro que o isolamento na prisão “era necessário para
prevenir que suspeitos soubessem da confissão de outros: dessa forma,
acordos da espécie “eu não vou falar se você também não”, não eram mais
uma possibilidade.
O caso Lava Jato
Assim como nas Mãos Limpas, a Lava Jato procura definir a montagem de um novo centro de poder.
Em sua opinião, o inimigo a ser combatido é o sistema político
tradicional, composto por partidos que estão no poder, o esquema
empresarial que os suporta e o sistema jurídico convencional, suscetível
de pressões.
O novo poder será decorrente da parceria entre jovens juízes,
procuradores, delegados – ou seja, eles próprios - com o que Moro define
como “opinião pública esclarecida” – que vem a ser os grupos
tradicionais de mídia.
Nesse jogo, assim como no xadrez, a figura a ser tombada é a do Rei
adversário. Enquanto o Rei estiver de pé será difícil romper a coesão do
seu grupo, os laços de lealdade, ampliando as delações premiadas.
Fica
claro, para o Grupo de Trabalho da Lava Jato, que o Bettino Craxi a se
mirar, o Rei a ser derrubado, é o ex-presidente Lula. O vazamento
sistemático de informações, sem nenhum filtro, é peça central dessa
estratégia.
Para a operação de guerra da Lava Jato funcionar, sem nenhum deslize
legal – que possa servir de pretexto para sua anulação - há a
necessidade da adesão total do grupo de trabalho e dos aliados da mídia
às teses de Moro.
A homogeneidade do GT só foi possível graças à atuação do Procurador
Geral da República Rodrigo Janot, que selecionou um a um os procuradores
da força tarefa; e da liberdade conferida à Polícia Federal do Paraná
para constituir seu grupo. O fato de procuradores paranaenses e
delegados já orbitarem em torno do ex-senador Flávio Arns certamente
favoreceu a homogeneização. E, obviamente, a ausencia de José Eduardo
Cardozo no Ministério da Justiça.
Para ganhar a adesão dos grupos de mídia, o pacto tácito incluiu a
blindagem dos políticos aliados. Explica-se por aí a decisão de Janot de
isentar Aécio Neves das denúncias do doleiro Alberto Yousseff, sem que
houvesse reclamações do Grupo de Trabalho.
A falta de cuidados com o desmonte da cadeia do petróleo também se
explica por aí. Na opinião de Moro e da Lava Jato a corrupção nas obras
públicas decorre de uma economia fechada, preocupada em privilegiar as
empresas nacionais. É o que está por trás das constantes tentativas de
avançar sobre o BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e
Social) – o similar italiano do BNDES foi um dos alvos preferenciais da
Mãos Limpas.
No
fundo, o arcabouço institucional brasileiro está sendo redesenhado por
um autêntico Tratado de Yalta, em torno do novo poder que se apresenta:
juízes, procuradores da República e delegados federais associados aos
grupos de mídia.
A grande contribuição à força Lava Jato foi certamente a enorme
extensão da corrupção desvendada. sem paralelo na história recente do
país e sem a sutileza dos movimentos de privatização e dos mercados de
juros e câmbio.
A única coisa que Moro não entendeu – ou talvez tenha entendido – é
que a ascensão de Silvio Berlusconi não foi um acidente de percurso. Foi
o rei posto – a mídia nada virtuosa – sobre os escombros do rei morto –
um sistema político corrupto.
A ideia de que a mídia é um território neutro, onde se disputam
espaços e ideias é pensamento muito ingênuo para estrategistas tão
refinados.