sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Artigos da Nature rebatem a postura anticientífica a respeito da fosfoetanolamina

Por Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira -
 
 
 

INTRODUÇÃO

Dois artigos foram publicados pela revista Nature no mesmo dia rebatendo a postura anticientífica dos brasileiros a respeito da fosfoetanolamina. Abaixo seguem as traduções resumidas de ambos os artigos:
 

Por Heidi Ledford

Pacientes exigem acesso a droga apesar da falta de testes clínicos.

Um tribunal no Estado brasileiro de São Paulo cortou a distribuição de um composto que é saudado por alguns como a cura milagroso para o câncer mesmo que ela nunca tenha sido formalmente testada em seres humanos.
 
Em 11 de novembro, para o alívio de muitos pesquisadores do câncer, a corte do Estado revogou as ordens judiciais que obrigavam a maior Universidade do país a liberar o composto da droga para centenas de pessoas com câncer terminal. Embora a reversão aplique-se apenas às solicitações realizadas pelos moradores do Estado de São Paulo, os administradores da Universidade estimam que ela abrange cerca de 80% das ordens que foram recebidas para a liberação do composto.
 
O composto, fosfoetanolamina, demonstrou efetividade para matar células tumorais apenas em camundongos e ratos de laboratório (A. K. Ferreira et al. Anticancer Res. 32, 95–104; 2012). Drogas que parecem promissoras em estudos de laboratório e em animais têm uma taxa notoriamente elevada de falha em testes com humanos. Apesar disso, alguns químicos no campus da Universidade de São Paulo em São Carlos tem fabricado o composto por anos e distribuído às pessoas com câncer. Alguns desses pacientes alegaram ter recuperações notáveis, perpetuando a reputação do composto com uma cura milagrosa.
 
Consternado com esta distribuição não-oficial da fosfoetanolamina, a administração da Universidade moveu uma ação em setembro de 2015 para que eles parassem. Os pacientes reclamaram no tribunal, e em outubro de 2015, do Supremo Tribunal Federal do Brasil solicitando através de um autor o direito de receber o composto. Um tribunal de primeira instância, em seguida, concedeu ordens a Universidade para que eles forneçam aos outros. Os funcionários da Universidade dizem que eles foram esmagados por mais de 800 pedidos.
 
“A decisão não só ignorou a opinião de especialistas médicos, mas também negligenciou o fato de que a droga só tinha sido testada em animais,” diz o bioeticista Volnei Garrafa, da Universidade de Brasília. “Tais decisões judiciais trazem falsas expectativas para os pacientes e suas famílias, criando tumulto e confusão na sociedade entre o que é seguro e o que não é.”
 
A Constituição Brasileira garante o acesso universal à saúde, então é comum no Brasil que os pacientes recorram aos tribunais para solicitar que as drogas sejam distribuídas a partir do sistema de saúde do Estado por causa de seu custo, diz Garrafa. Mas a fosfoetanolamina apresenta uma situação diferente, acrescenta, porque não é realmente uma ‘droga’ em si. Ela não foi aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Brasil.

Aqueles que argumentam que as pessoas que estão em estado terminal têm o direito de tentar medicamentos experimentais viram a decisão no início deste ano como uma vitória significativa. Mas, para a administração da Universidade, reguladores de medicamentos e pesquisadores do câncer, demonstraram desrespeito pelo princípios científico básico que a droga deve ser demonstrada ser segura e eficaz antes de ser dada a pacientes fora de um ensaio clínico.
 
“É uma violação da autonomia da Universidade”, diz Marco Antonio Zago, médico e presidente da Universidade de São Paulo. “Somos vistos como uma fábrica para produzir algo que não acreditamos que deve ser feito.”
 
Fosfoetanolamina é um importante bloco de construção dos lipídios que compõem as membranas celulares. O composto também pode como um sinal molecular que ativa certos processos celulares. Embora alguns estudos sugerem que o composto pode matar células cancerígenas em células isoladas e camundongos, isso ainda não está totalmente claro sobre como o composto produz esta resposta. O bioquímico Durvanei Augusto Maria no Instituto Butantan, em São Paulo, acredita que o composto pode ser importado para as células tumorais e, uma vez lá dentro, os processos de gatilho fazem com que a célula se autodestrua. O imunologista James Venturini da Universidade de São Paulo e seus colegas descobriram que a fosfoetanolamina pode modular a resposta do sistema imunológico para o câncer ou afetar a divisão celular (M. S. P. de Arruda et al. Braz. Arch. Biol. Technol. 54, 1203–1210; 2011).
 
Mas para justificar o uso da fosfoetanolamina nas pessoas, Venturini diz, teriam que testá-la rigorosamente em uma série de estudos clínicos com voluntários humanos. “Eu acredito fortemente  que duplo-cego, estudos clínicos randomizados são necessários”, diz ele.
 
E mesmo antes de tais ensaios, mais estudos pré-clínicos teriam que ser feitos, afirma Jailson Bittencourt de Andrade, secretário para a política de pesquisa e desenvolvimento no Ministério de Ciência e Tecnologia do Brasil. O ministério planeja financiar esses estudos, diz ele, e já pediu a vários laboratórios de pesquisa no país para fazer o trabalho. Se esses testes e ensaios clínicos subsequentes serem bem sucedidos, diz ele, o ministério vai também financiar a investigação necessária para incrementar a produção fosfoetanolamina e a qualidade necessária para uma droga aprovada.

Esse processo levará anos. Enquanto isso, os advogados que representam as pessoas com câncer prometeram apelar contra a decisão mais recente. Se esses apelos tiveram sucesso, Andrade acredita que as pessoas não vão esperar até que todos os testes sejam concluídos, e podem até mesmo abandonar o tratamento convencional em favor da fosfoetanolamina. “Muitos pacientes dizem ter experimentado a droga e afirmam ter funcionado com eles”, diz ele. “Então os outros pacientes e suas famílias agora querem a fosfoetanolamina.”
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Publicado na Nature

Controvérsia no Brasil sobre o acesso a uma “cura do câncer” pode criar um precedente perigoso.

Um furioso debate que está sendo travado no Brasil coloca a maior Universidade do país contra centenas de pacientes com câncer que querem ter acesso a um composto que alguns têm afirmado ser uma cura milagrosa.
 
Se o composto contém quaisquer benefícios: isso nunca foi avaliado em testes com humanos. O conflito é uma versão extrema de um debate que acontece nos Estados Unidos e em outros lugares, com pessoas com doenças terminais doenças que ainda a medicina moderna não oferece cura que exigem o acesso a tratamentos  não testados.
 
Como relatamos no artigo acima, os tribunais no Brasil têm simpatizado com essas exigências, ordenando que a Universidade de São Paulo forneça um composto chamado fosfoetanolamina para centenas de pacientes. Pessoas de ambos os lados deste debate estão armadas com boas intenções. A Universidade alega que a droga não foi testada e não deve ser usada para dar falsas esperanças e efeitos colaterais desconhecidos para pacientes vulneráveis. Por outro lado, é compreensível que as pessoas com pouca esperança possam preferir a incerteza de uma droga não testada à certeza de uma doença terminal.
 
O problema preocupante que está sendo relatado é o fato de que algumas pessoas com câncer não estão tomando os medicamentos prescritos, por medo de que a medicina baseada em evidência possa interferir com o suposto milagre da fosfoetanolamina. O teor do debate também tem sido prejudicial às vezes, com alguns defensores da fosfoetanolamina, acusando o governo ou a indústria farmacêutica de suprimir ativamente o desenvolvimento da droga.
 
A triste verdade é que é pouco provável que a droga seja um milagre. Nos Estados Unidos, por exemplo, apenas uma em cada dez drogas passam a fase I de ensaios clínicos que estão destinados a obter a aprovação da Food and Drug Administration (FDA). E a fosfoetanolamina não chegou nem perto disso: a sua promessa é apoiada apenas por algumas publicações com base em testes de laboratórios com animais.
 
Mesmo assim, os pacientes terminais podem estar dispostos a tentar um tratamento com taxas mais passas de sucesso. Nos Estados Unidos, vários Estados aprovaram leis que, em diferentes graus, concedem a tais pacientes o direito de testar drogas experimentais fora do alcance da FDA. As leis provocaram debates fervorosos e lançaram falsas esperanças para outros pacientes que poderiam usar métodos mais promissores.
 
A situação no Brasil é mais extrema. Um laboratório da Universidade não é nem uma planta farmacêutica e nem uma farmácia; não é obrigada a seguir bons protocolos de fabricação. Não há nenhuma fiscalização para certificar-se do que está indo para as cápsulas azul-e-branco de fosfoetanolamina produzidas na Universidade de São Paulo. Nem os efeitos colaterais do composto e nem a sua eficácia são monitorados sistematicamente. Solicitar que uma Universidade forneça uma droga é mostrar um desrespeito para a importância de todas estas medidas de segurança.
 
A esperança da fosfoetanolamina encontra-se em novas pesquisas. Os financiadores federais no Brasil manifestaram apoio para a realização de mais estudos pré-clínicos da droga. Os pesquisadores estão buscando opções para mover o composto em ensaios clínicos, os estudos em animais devem ter sucesso; pacientes que estão interessados em seguir o tratamento fosfoetanolamina podem se inscrever nos testes clínicos. Entretanto, os tribunais devem libertar os pacientes do cabo de guerra jurídico e defender a mais recente decisão de suspender a distribuição da fosfoetanolamina até que o seu potencial seja melhor compreendido.


 

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Decreto Federal exclui responsabilidade das mineradores em rompimento de barragem?

Publicado por Dáfani Reategui - 17/11/2015

O ódio nas redes e a falta de análise crítica dos brasileiros. 

 


Algumas pessoas estão compartilhando posts revoltados sobre o Decreto nº 8.572/2015 nas redes sociais. Segundo tais pessoas, o mencionado decreto determina que rompimento de barragem agora é desastre natural, excluindo responsabilidade dos envolvidos.

Ao saber disso quase não acreditei, achei absurdo que pessoas se revoltassem com tal decreto, mas ao receber os prints das postagens com toda a polêmica envolvida resolvi esclarecer seu real teor para evitar maiores confusões.

Decreto Federal exclui responsabilidade das mineradores em rompimento de barragem 

 

Decreto Federal exclui responsabilidade das mineradores em rompimento de barragem

A simples leitura do decreto já evitaria toda a polêmica, eis seu inteiro teor:

Decreto nº 8.572, de 13 de novembro de 2015

Altera o Decreto nº 5.113, de 22 de junho de 2004, que regulamenta o art. 20, inciso XVI, da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, que dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS.
A PRESIDENTA DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere art. 84, caput, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 20, caput, inciso XVI, da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990,
DECRETA:
Art. 1º O Decreto nº 5.113, de 22 de junho de 2004, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 2º...
...
Parágrafo único. Para fins do disposto no inciso XVI do caput do art. 20 da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, considera-se também como natural o desastre decorrente do rompimento ou colapso de barragens que ocasione movimento de massa, com danos a unidades residenciais.” (NR)
Art. 2º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 13 de novembro de 2015; 194º da Independência e 127º da República.
A interpretação literal do parágrafo único já demonstra que considera-se também como natural o desastre decorrente do rompimento ou colapso de barragens para fins do disposto no inciso XVI do caput do art. 20 da Lei nº 8.036/90.

A mencionada lei dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e o art. 20 estabelece as hipóteses nas quais podem ser sacados os valores correspondentes ao FGTS. O inciso XVI, por sua vez, determina que poderá haver saque do FGTS por motivos de necessidade pessoal, cuja urgência e gravidade decorra de desastre natural.

O “polêmico” decreto nº 8.572/2015 serve, portanto, para assegurar às vítimas de desastres decorrentes de rompimento de barragens a possibilidade de sacar o FGTS.

Esse decreto altera o decreto nº 5.113/2004 que regulamenta as hipóteses de saque de FGTS em situações de emergência ou estado de calamidade pública decorrentes de desastre natural. 

Nesse decreto não consta como desastre natural o rompimento de barragens, não sendo possível o saque do FGTS pelos afetados pelo rompimento da barragem em Mariana. Assim, para fins de possibilitar o recomeço da vida das pessoas atingidas, foi editado o decreto nº 8.036/90 possibilitando a movimentação da conta do FGTS.

Mas o rompimento de barragens vai ser considerado desastre natural mesmo que comprovada negligência?
Claro que não. O decreto serve tão somente para possibilitar às vítimas de rompimento de barragens a hipótese de saque do FGTS. Isso está expresso no próprio decreto.

Decretos servem apenas para regulamentar matérias, no caso as hipóteses de desastre natural para fins de saque do FGTS.

Não é possível que um decreto exclua a responsabilidade civil ou penal prevista em lei. Não sei de onde essa pessoa tirou isso:

Decreto Federal exclui responsabilidade das mineradores em rompimento de barragem

Frisa-se que através de um decreto não seria possível a criação de mais uma hipótese de saque do FGTS, o que deveria ser feito através de lei que possui tramitação demorada. Assim, a solução encontrada foi a modificação do decreto regulamentador da lei, incluindo o rompimento de barragens na hipótese de desastre natural.

Em verdade, o Decreto nº 8.572/15 tornou mais ágil o procedimento para saque do FGTS dos trabalhadores afetados pelo rompimento de barragens.

Cumpre salientar que em eventual ação de reparação de danos os trabalhadores que sacaram os valores de FGTS para refazer a vida poderão cobrar ressarcimento dos responsáveis.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Parabéns, atingimos a burrice máxima

Eliane Brum - 9 NOV 2015 - 14:01 BRST
 
A “baranga” Simone de Beauvoir e a importância de um livro que ensina a conversar com fascistas
 

Simone de Beauvoir
Simone de Beauvoir. / Arquivo El País

 
A fogueira de Simone de Beauvoir a partir da questão do ENEM mostrou que a burrice se tornou um problema estrutural do Brasil. Se não for enfrentada, não há chance. Hordas e hordas de burros que ocupam espaços institucionais, burros que ocupam bancadas de TV, burros pagos por dinheiro público, burros pagos por dinheiro privado, burros em lugares privilegiados, atacaram a filósofa francesa porque o Exame Nacional de Ensino Médio colocou na prova um trecho de uma de suas obras, O Segundo Sexo, começando pela frase célebre: “Uma mulher não nasce mulher, torna-se mulher”. Bastou para os burros levantarem as orelhas e relincharem sua ignorância em volumes constrangedores. Debater com seriedade a burrice nacional é mais urgente do que discutir a crise econômica e o baixo crescimento do país. A burrice está na raiz da crise política mais ampla. A burrice corrompe a vida, a privada e a pública. Dia após dia.
 
Recapitulando alguns espasmos do mais recente surto de burrice. O verbete de Simone de Beauvoir (1908-1986) na Wikipedia, conforme mostrou uma reportagem da BBC, foi invadido para tachar a escritora de “pedófila” e “nazista”. A Câmara de Vereadores de Campinas, no estado de São Paulo, aprovou uma “moção de repúdio” à filósofa. O deputado Marco Feliciano (PSC-SP), da Bancada da Bíblia, descobriu na frase “uma escolha adrede, ardilosa e discrepante do que se tem decidido sobre o que se deve ensinar aos nossos jovens”. Em sua página no Facebook, o promotor de justiça do município paulista de Sorocaba, Jorge Alberto de Oliveira Marum, chamou Beauvoir de “baranga francesa que não toma banho, não usa sutiã e não se depila”. Como o tema da redação do ENEM era “a persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”, houve gente que estudou em colégios caros afirmando que este era um tema de esquerda, e portanto um sinal inequívoco de uma conspiração ideológica por parte do governo federal. Como sugeriu o crítico de cinema Inácio Araújo em seu blog, se defender que a mulher tenha o direito de andar sem ser perturbada, agredida e chutada é tema de esquerda, isso só pode significar que a direita vai muito mal.
 
A única arma capaz de derrotar a burrice é o pensamento

Está cada vez mais difícil fazer humor no Brasil. Como nada do que foi relatado acima é piada, somos submetidos cotidianamente a uma experiência de perversão. Também não tem sido fácil escrever quando não se é humorista, por que o que se pode dizer, seriamente, diante de uma moção de repúdio à Simone de Beauvoir? Mas é preciso tratar com seriedade, porque talvez não exista nada mais sério do que a boçalidade que atravessa o país. Torna-se urgente, prioritário, fazer um esforço coletivo e enfrentar a burrice com o único instrumento capaz de derrotá-la: o pensamento.
 
Esta é a potência e a generosidade de um livro lançado pela filósofa Marcia Tiburi, escritora e professora universitária. O título vai direto ao ponto, afinal os tempos são graves demais para papinhos de salão: Como conversar com um fascista – reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro (Record). Nas 194 páginas, Marcia enfrenta as várias faces do cotidiano atual com profundidade, mas de forma acessível a quem não está familiarizado com os conceitos. Faz o mais difícil: escrever simples sem simplificar. É um livro que se pretende para todos, e não para os seus pares. Quem acompanha a trajetória da filósofa conhece a sua coragem. E este é um livro de coragem, já que é tão difícil quanto arriscado escrever sobre o que está em movimento, sem a proteção assegurada pelo distanciamento histórico. Poucos são os intelectuais que se arriscam a sair do conforto de seus feudos para enfrentar o debate público com suas dúvidas. E por isso aqueles que se arriscam de forma honesta, sem ficar arrotando suas certezas e suas credenciais, ou usando-as para massacrar aqueles que já são massacrados, são tão preciosos.

O confronto atual não é entre direita e esquerda, mas entre os que pensam e os que não pensam

“Eu queria saber por que dialogar é impossível”, conta Marcia Tiburi, sobre a pergunta que a moveu nessa busca. Para enfrentar a ausência do pensamento, a filósofa propõe a resistência pelo diálogo. Este é um esforço de cada um –e de todos. Arriscar-se a deixar o “isolamento em comunidade”, a forma atual da vida social e política, para confrontar o que ela chama de “consumismo da linguagem”. Compreender o confronto atual como um confronto entre direita e esquerda, desenvolvimentistas e ecologistas, governistas e oposicionistas, machistas e feministas é, segundo ela, uma redução. O confronto atual seria mais profundo e também mais dramático: entre os que pensam e os que não pensam.
 
O exercício que faço, deste parágrafo em diante, é buscar compreender a fogueira em que Simone de Beauvoir foi jogada nos últimos dias, entre outros fatos recentes, a partir das ideias deste livro. Para começar, a seriedade do episódio do ENEM pode ser demonstrada neste trecho tão agudo: “Se levarmos em conta que falar qualquer coisa está muito fácil, que falamos em excesso e falamos coisas desnecessárias, um novo consumismo emerge entre nós, o consumismo da linguagem. O problema é que ele produz, como qualquer consumismo, muito lixo. E o problema de qualquer lixo é que ele não retorna à natureza como se nada tivesse acontecido. Ele altera profundamente nossas vidas em um sentido físico e mental. O que se come, o que se vê, o que se ouve, numa palavra, o que se introjeta, vira corpo, se torna existência”.
 
Vale perguntar. Num país em que a preocupação com a educação é uma flatulência, em que a não educação é a regra, para onde vai o lixo e que tipo de impacto ele produz na tessitura do cotidiano, nos corações e mentes de quem o consome? O que acontece com a fogueira de Simone de Beauvoir num contexto em que aqueles que a jogaram no fogo possivelmente sequer a leram? Que restos dos discursos vazios sobre a filósofa permanecerão na memória de uma população que não tem seus livros na estante e que tipo de eco produzirão?
 
Como dimensionar a gravidade de um vereador eleito, pago com dinheiro público para legislar e, portanto, para decidir destinos coletivos, dizer que a escolha da frase de Simone de Beauvoir para uma prova do ENEM é algo “demoníaco”, como afirmou Campos Filho (DEM)? E como enfrentá-la com a seriedade necessária?
 
Com a palavra, o autor da “moção de repúdio”: “Foram buscar lá Simone de Beauvoir, lá pro ano de mil trocentos e pôco.... (...) A grande maioria é favorável à lei da natureza. Homem é homem. Mulher é mulher. (...) Cuidado com essa pulsão, essa pulsão pode levar à cadeia. O senhor pode passar na frente do caixa eletrônico e ter uma pulsão de vontade de roubar e vai preso. Pode ter uma pulsão de vontade de estuprar e vai preso. Então, tomem cuidado com essa pulsão, ah, hoje de manhã sou menina, agora à noite eu sou homem....”.
 
O vazio de pensamento não é silencioso, mas repleto de clichês, frases prontas e repetições
 
O vereador nem sequer sabe em que século Simone de Beauvoir nasceu, viveu e produziu pensamento – “mil trocentos e pôco”. Nem sequer tentou compreender o que a frase citada no ENEM significa. Não é engraçado. É a ruína causando mais ruína. O que interessa é fazer barulho, porque o barulho encobre o vazio de ideias. O que importa é perverter a palavra, usando o que sequer tentou entender para enclausurar o pensamento e reafirmar a certeza em nome de uma suposta “lei da natureza” que jamais existiu. A perversão do fascista é a de acusar o outro de manipulação ideológica quando é ele o manipulador. É acusar o outro de impor um pensamento quando é ele que empreende todo os esforços para barrar qualquer pensamento. É impedir o diálogo denunciando o outro pelo ato que ele próprio cometeu. É nessa repetição de boçalidades que seguem os discursos de outros vereadores, invocando clichês bíblicos, lembrando de Sodoma e Gomorra e Adão e Eva, abusando de Deus.
 
Para perverter a realidade, o fascista conta com o consumismo da linguagem. Trata-se, como aponta Marcia Tiburi, de um vazio repleto de falas prontas. Não é um vazio silencioso, espaço aberto para buscar o outro, o inusitado, o surpreendente. Mas sim um vazio barulhento, abarrotado de clichês, de frases repetidas e repetitivas, usadas para se proteger do pensamento. Os lugares-comuns, neste caso específico a constante invocação de Deus e de leis bíblicas, são usados como um escudo contra a reflexão. Todo o esforço é empreendido para não existir qualquer chance de pensamento, ainda que um bem pequenino.
 
Neste vazio, a filósofa acredita que os meios tecnológicos e a mídia desempenham um papel crucial. Repete-se o que é dito na TV, no rádio. Fala-se, muito, sem pensar no que se diz. No gesto do mero “compartilhar” sem ler, tão fácil quanto comprar com um clique pela internet, foge-se do pensamento analítico e crítico, trocando-o pelo vazio consumista da linguagem e da ação repetitiva. É assim que a burrice se multiplica em cliques, propagando-se em rede. O título deste artigo é esperançoso, mas não corresponde à realidade: a burrice não tem limites, ela sempre pode atingir patamares ainda mais extremos.
 
Se não houver limites para a idiotice, resta isolar-se e estocar alimentos
 
Episódios semelhantes à “moção de repúdio” à Simone de Beauvoir ocorriam esporadicamente em rincões afastados, e logo eram ridicularizados. Hoje, acontecem na Câmara de Vereadores de uma das maiores e mais ricas cidades do estado de São Paulo, no sudeste do Brasil, uma cidade que abriga várias universidades, entre elas a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), uma das mais respeitadas do país. E cadê os intelectuais? Rindo dos burros nas cantinas universitárias? Será? Não era de se esperar mais iniciativas de busca do diálogo, de criação de oportunidades para explicar quem é Simone de Beauvoir e refletir sobre sua obra, ou mesmo a ocupação da Câmara, para produzir reação e movimento que permitisse o conhecimento e combatesse a ignorância?
 
Talvez o polêmico livro Submisssão (Alfaguara), do francês Michel Houellebecq, possa ter alguma ressonância maior por aqui. Nele, só para lembrar, o protagonista é um acadêmico desencantado que se depara com a vitória de um partido islâmico nas eleições da França. Depois de assistir ao desenrolar dos acontecimentos pela TV, já que não se sente motivado a participar de nenhum debate que não seja sobre a sua própria tese acadêmica (ou nem mesmo sobre ela), se choca com o resultado eleitoral. É o protagonista que não protagoniza –ou só protagoniza por omissão (ou submissão). Aos poucos, os novos donos do poder lhe acenam não só com a manutenção dos privilégios, mas com uma considerável ampliação dos privilégios. E ele, afinal, conclui que aderir pode não ser tão ruim assim.
 
Os burros estão por toda parte e muitos deles estudaram nas melhores escolas e, o pior, muitos ensinam nas melhores escolas. A “moção de repúdio” à Simone de Beauvoir foi aprovada pela Câmara de Campinas por 25 votos a cinco. Assim, os burros são a maioria. É preciso enfrentá-los com pensamento, fazer a resistência pelo diálogo. Ou, como diz Marcia Tiburi: “Sem pensamento não há diálogo possível nem emancipação em nível algum. Se não houver limites para a idiotice, resta isolar-se e estocar alimentos”.
 
O promotor e professor universitário que reduziu Simone de Beauvoir a “uma baranga”, ao comentar a questão do ENEM em sua página no Facebook, fez o seguinte comentário: “Exame Nacional-Socialista da Doutrinação Sub-Marxista. Aprendam jovens: mulher não nasce mulher, nasce uma baranga francesa que não toma banho, não usa sutiã e não se depila. Só depois é pervertida pelo capitalismo opressor e se torna mulher que toma banho, usa sutiã e se depila”. Depois da repercussão negativa, o que incluiu uma nota de repúdio por parte da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Jorge Alberto de Oliveira Marum apagou os posts e defendeu-se, em outra postagem, alegando que pretendia ter sido irônico: “Ironia, para quem não sabe, é uma figura de linguagem que consiste em afirmar o contrário do que se pensa”. Interprete-se.
 
A burrice, tanto como categoria cognitiva quanto moral, venceu

“Distorcer é poder” é o título de um dos capítulos do livro em que a filósofa enfrenta a prática amplamente difundida de esvaziar as palavras pela distorção. Como transformar a vítima em culpada, como se faz rotineiramente com as mulheres no falso debate do aborto, por exemplo, ou no tratamento do estupro. Ou distorcer para que aquele que detém os privilégios pareça ser o que têm seus direitos ameaçados: o branco, por exemplo, quando se apresenta como prejudicado pelo sistema de cotas raciais que busca reparar injustiças históricas cometidas contra os negros, ocultando assim que sempre foi o privilegiado; ou quando se invoca um suposto “orgulho heterossexual” na tentativa de mascarar a violência contra os homossexuais, alegando que querem privilégios, quando todos sabem que a heterossexualidade jamais foi contestada ou atacada, nem em sua expressão nem em seus direitos. E também é por essa conversão que os manifestantes de junho de 2013 foram tachados de “vândalos” por parte da mídia e, hoje, uma lei em discussão no Congresso ameaça converter quem protesta em “terrorista”.
 
A própria “democracia” pode ser vista a partir da prática da distorção, já que há aquela, mais difundida, que é vendida pelo mercado. “De um lado, há uma democracia que deve parecer como realizada, contra outra democracia, que está na ordem do desejo e do sonho e que não teria preço”. O capitalismo sequestra a democracia também como palavra, que passa a ser consumida, junto com outras: felicidade, ética, liberdade, oportunidade, mérito. Palavras que a filósofa chama de “mágicas”, invocadas a serviço do ocultamento da opressão. “Antidemocrático, o capitalismo precisaria ocultar sua única democracia verdadeira: a partilha da miséria e, hoje em dia, cada vez mais, a matabilidade”, afirma Marcia Tiburi.
 
Quando se invade o verbete de Simone de Beauvoir na Wikipedia é também disso que se trata: distorcer e replicar até virar “verdade”. Aliena-se os fatos de seu contexto histórico para produzir rótulos. Assim, após o ENEM, a filósofa foi tachada de “pedófila” e de “nazista”. Ambas as afirmações já foram retiradas da página pelo responsável, avisando que a manteria fechada até “que o furor acabasse e as pessoas perdessem o interesse em danificar o artigo”. Entre as dezenas de distorções do verbete, segundo a matéria da BBC, um usuário disse que a filósofa havia escrito um "livro de estupro". Outro informou que Beauvoir era uma "antifeminista". Um terceiro disse ainda que ela era "muito conhecida por seu comodismo e pela luta na justiça por uma lei que proibia o trabalho das mulheres fora de casa”.
 
Se a linguagem nos tornou seres políticos, a destruição da linguagem nos tornará o quê?

As distorções servem à reprodutibilidade da burrice. Ao converter a filósofa no que é interpretado como o mais monstruoso – “pedófila” e “nazista” – o objetivo é tornar impossível refletir sobre o que ela escreveu: “uma mulher não nasce mulher, torna-se mulher”. A ampla distorção das palavras serve, de novo, ao vazio do pensamento. Pede-se aos burros que a repliquem à exaustão em cliques histéricos. A linguagem, como escreve Marcia Tiburi, tem sido rebaixada à distribuição da violência – também pelos meios de comunicação e pelas redes sociais. “Vivemos no império da canalhice, onde a burrice, tanto como categoria cognitiva quanto moral, venceu”, afirma. “Ela se transformou no todo do poder.”
 
Aderir é viver. Esta parece ser a frase deste momento de orgulho da ignorância e exaltação da burrice. Aqui, a pergunta se impõe: “se a linguagem nos tornou seres políticos, a destruição da linguagem nos tornará o quê?”.
 
Na semana passada, foi divulgado na página da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República um estudo que reuniu pesquisadores de diversas instituições, apresentado como o mais completo já feito no Brasil sobre os efeitos da mudança climática. Refletir seriamente sobre a mudança climática é urgente, mas há muito menos pensamento e ação do que o momento exigiria, apesar de estarmos às vésperas da Conferência do Clima em Paris. Assim, a divulgação de um estudo com as conclusões a que se chegou poderia ser uma oportunidade excelente para promover participação e diálogo. Mas, entre as tantas previsões que apontaram para um possível drama climático daqui a 25 anos, em 2040 – doenças, calor extremo, falta d’água e de energia etc –, uma foi destacada por diferentes veículos da imprensa: a possível perda de uma área imobiliária avaliada em R$ 109 bilhões no Rio de Janeiro, devido à elevação do nível do mar causada pelo aquecimento global.
 
Não as perdas humanas, não a corrosão da vida, não o aniquilamento dos mais pobres e dos mais frágeis. Não. O que se destaca é aquilo que se monetariza, é a perda do patrimônio material, no caso imobiliário. O que merece título é o cifrão. O episódio evoca um dos capítulos mais interessantes de Como conversar com um fascista: “O capitalismo é a redução da vida ao plano econômico. (...) O pensamento está minado pela lógica do ‘rendimento’. Viver torna-se uma questão apenas econômica. A economia torna-se uma forma de vida administrada com regras próprias, tais como o consumo, o endividamento, a segurança pela qual se pode pagar. Tudo isso é sistêmico e, ao mesmo tempo, algo histérico. (...) As palavras funcionam como estigmas ou como dogmas que sustentam ideias orientadoras de práticas”. Se a ordem do discurso capitalista é basicamente teológica, é porque ele funciona como uma religião no âmbito das escrituras e das pregações (em geral no púlpito tecnológico da televisão)”. Se depois de tanto calarmos sobre a mudança climática, falarmos dela a partir da lógica monetária, estamos todos (mais) perdidos.
 
Precisamos resistir em nome de um diálogo que torne o ódio impotente

Mas é em outro episódio destes últimos dias que a perversão do Brasil atual se revelou em toda a sua monstruosidade: a Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro concluiu em inquérito que o policial que matou um menino de dez anos agiu em “legítima defesa”. Eduardo de Jesus brincava na porta da sua casa, numa das favelas do Complexo do Alemão, quando teve a cabeça atingida por um tiro de fuzil. Sua mãe encontrou parte do seu cérebro na sala. O inquérito isentou de qualquer responsabilidade os policiais envolvidos, por estarem supostamente em confronto com narcotraficantes. Eles teriam apenas “errado” o tiro.
 
Eduardo estava a cinco metros do policial que o matou. Terezinha de Jesus, a mãe do menino, afirma que não havia tiroteio naquele dia. “Eu parti para cima do policial. Gritei que tinha matado meu filho e ele me respondeu, com seu fuzil na minha cabeça, que igual que tinha matado ele poderia também me matar, porque o menino era filho de bandido. Nunca vou esquecer aquilo. Posso estar em qualquer lugar do mundo, que nunca esquecerei a cara daquele policial”. Ao ser informada por jornalistas que a polícia concluiu que seu filho foi morto em legítima defesa, Terezinha disse que sentia vontade “de quebrar tudo”.
 
Quando a perversão supera tal limite é porque estamos quase no ponto de não retorno. “Não acabaremos com o ódio pregando o amor”, diz Marcia Tiburi. “Mas agindo em nome de um diálogo que não apenas mostre que o ódio é impotente, mas que o torne impotente.”
 
Em Como conversar com um fascista, a filósofa defende a necessidade de começar a tentar falar de outro modo. O diálogo não como salvação, mas como experimento, como ativismo filosófico para enfrentar a antipolítica. A política, lembra a autora, “é laço amoroso entre pessoas que podem falar e se escutar não porque sejam iguais, mas porque deixaram de lado suas carapaças de ódio e quebraram o muro de cimento onde suas subjetividades estão enterradas”.
 
Num país de antipolítica e antieducação generalizada como o Brasil é preciso se mover. É urgente aprender a conversar com um fascista, mesmo que pareça impossível. Expor ao outro aquele que não suporta a diferença. Revelar suas contradições e confrontá-lo pelo diálogo é um ato de resistência. Enfrentar a burrice com a única arma que ela teme: o pensamento.
 
É isso ou não vai adiantar nem estocar alimentos.
 

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebru