Por Francisco J. R. Paumgartten
O desenvolvimento de novos medicamentos é processo complexo,
longo, caro e altamente seletivo, com elevadíssima taxa de insucesso.
Estima-se que de 5 mil a 10 mil moléculas que são submetidas à triagem
inicial para atividade farmacológica, apenas uma se tornará um novo
medicamento, aprovado para comercialização pelos órgãos reguladores e
útil na prática médica.
Pense um absurdo, a Bahia tem precedente.
A célebre frase de Otávio Mangabeira, escritor, membro da Academia
Brasileira de Letras e ex-governador da Bahia, é injusta ao se
restringir ao estado natal do seu autor. A afirmação se aplica ao país
todo, como demonstra o insólito episódio da pílula de fosfoetanolamina
sintética (“fosfo”), também conhecida como “pílula do câncer”.
O absurdo, no caso da fosfo, não reside no fato de muitos
terem acreditado nas alegações não comprovadas de que ela seria um
medicamento eficaz, capaz de curar pacientes com câncer. Afinal, não é
incomum, e é até compreensível, que pacientes com doenças graves,
considerados pelos médicos como “fora de possibilidades terapêuticas”, e
seus familiares, agarrarem-se firmemente a crenças infundadas de que a
cura, negada pela medicina, poderia ser alcançada por terapias
alternativas, não convencionais, e não reconhecidas pela ciência.
O absurdo, nesse caso, é o Congresso Nacional ter ignorado as recomendações contrárias à liberação do uso da
fosfo,
feitas pelo órgão técnico regulador, a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa), e por entidades científicas respeitadas como a
Associação Médica Brasileira (AMB) e a Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC), e aprovado, por esmagadora maioria de seus
membros, a
Lei 13.269/2016 – prontamente sancionada sem vetos pela
então presidente da república – que autoriza a produção, prescrição e
uso da pílula de
fosfo. A eficácia da Lei 13.269/2016 foi
temporariamente suspensa por decisão dos ministros do Supremo Tribunal
Federal (STF) em ação direta de inconstitucionalidade impetrada pela
AMB. Pesou na decisão da suprema corte, alcançada por estreita maioria
de votos dos membros do colegiado, o argumento de que a eficácia e a
segurança da
fosfo não haviam sido demonstradas por estudos clínicos.
No momento em que este artigo está sendo escrito, o autor recebeu a notícia que o ensaio clínico da fosfo,
patrocinado pela Secretaria de Saúde de São Paulo, foi suspenso “por
questões éticas”. Isto porque uma avaliação clínica programada revelou
que 58 de 59 pacientes com câncer de várias localizações que haviam
recebido regularmente a fosfo não apresentaram qualquer
resposta ao tratamento. Por se tratar de estudo não controlado, em
relação ao único paciente (com melanoma) que teria melhorado, não é
possível excluir um efeito retardado da quimioterapia anterior, a
melhora espontânea, ou a contribuição do efeito placebo.
A interrupção do estudo é decisão acertada, mas, na realidade, esse
insólito estudo, fora dos padrões metodológicos mais rigorosos, com
resultados previsíveis e riscos para os pacientes que não foram
adequadamente avaliados, “por razões éticas” nunca poderia ter sido
aprovado e iniciado. Como antecipado lucidamente por alguns
pesquisadores, a avassaladora onda da fosfo – como tantos
outros modismos e crenças populares em remédios milagrosos – acabaria se
desfazendo espontaneamente com o tempo. Entretanto, embora
desaparecendo da mídia, o episódio da fosfo deixará uma indelével mácula na história do sistema brasileiro de revisão ética.
Um dos requisitos fundamentais para um ensaio clínico ser considerado
“ético”, é o julgamento criterioso e a conclusão, com base na melhor
evidência científica disponível, que os potenciais benefícios para os
pacientes, e o conhecimento a ser adquirido pela sociedade, se sobrepõem
aos riscos para os participantes da pesquisa. Quando se trata de um
novo medicamento ou terapia farmacológica, o potencial benefício é
avaliado pelos resultados dos testes pré-clínicos de triagem de possível
atividade terapêutica. Os estudos pré-clínicos realizados com a fosfo
não apenas falharam em indicar consistentemente uma “possível atividade
terapêutica”, como mostraram justamente o oposto, a improbabilidade da fosfo ter efeito antineoplásico clinicamente útil.
Ensaios da toxicidade da fosfo “sintética” para linhagens de
células neoplásicas, publicados pelos próprios proponentes da “pílula
do câncer”, evidenciaram efeitos citotóxicos que podem ser considerados
não específicos, ou seja, efeitos que ocorrem apenas em concentrações
relativamente elevadas, com CL50s (concentrações letais 50%; i.e., concentrações que matam 50% das células expostas) na faixa de concentrações milimolares (mM ou 10-3
M), enquanto os medicamentos oncológicos são mais específicos, sendo
tóxicos para as linhagens de células neoplásicas em concentrações muito
menores, com CL50s nas faixas do micromolar (µM ou 10-6 M) ou nanomolar (nM ou10-9 M), ou seja, as CL50 de medicamentos anticâncer usados na clínica são, via de regra, mil ou 100 mil vezes inferiores às CL50 obtidas para a fosfo com as mesmas linhagens de células cancerosas.
Esses resultados preliminares desalentadores já seriam suficientes
para que não fossem investidos mais recursos e tempo na investigação de
uma improvável atividade anticâncer. Se tivesse sido submetida à
abordagem hierarquizada para triagem de novos medicamentos anticâncer
proposta pelo Instituto Nacional de Câncer dos EUA (NCI-60 Human Tumor
Cell Line Screen), a fosfo teria sido reprovada logo no primeiro nível de testes. Além disso, os estudos in vivo da fosfo em ratos e camundongos com tumores xeno-enxertados produziram resultados modestos e inconsistentes entre experimentos.
O desenvolvimento de novos medicamentos é processo complexo, longo,
caro e altamente seletivo, com elevadíssima taxa de insucesso. Estima-se
que de 5 mil a 10 mil moléculas que são submetidas à triagem inicial
para atividade farmacológica, apenas uma se tornará um novo medicamento,
aprovado para comercialização pelos órgãos reguladores e útil na
prática médica.
Não obstante esse fato, surpreendentemente, o Ministério da Ciência
Tecnologia e Inovação (MCTI), já em pleno “apagão” do financiamento para
a pesquisa científica no país, investiu R$ 10 milhões em estudos
pré-clínicos da fosfo como medicamento oncológico. Há, certamente, um grande número de moléculas muito mais promissoras do que a fosfo
para tratamento do câncer, ou potencialmente úteis para tratar as
várias doenças negligenciadas que afligem a nossa população, que
permanecem nas prateleiras dos laboratórios universitários, aguardando o
apoio das agências de fomento à pesquisa para serem investigadas em
profundidade.
Além da falta de evidências experimentais (e de relatos de casos clínicos documentados) de que a fosfo tem atividade anticâncer, o conjunto de estudos pré-clínicos de toxicidade da fosfo
foi notoriamente insuficiente para apoiar a etapa subsequente de
investigação clínica de eficácia e segurança em pacientes com câncer.
Não se trata apenas de excluir a possibilidade de efeitos tóxicos agudos que aparecem no curto prazo (a história de uso da fosfo por
pacientes que se automedicaram já sugere que esse risco é baixo), mas
de revelar potenciais efeitos adversos mais sutis, que não são apontados
por estudos não controlados. A realização de estudos clínicos
envolvendo o tratamento de pacientes por períodos prolongados requer,
entre outras investigações prévias, ensaios pré-clínicos de segurança de
duração comparável à do estudo clínico proposto (e.g., de 90 e
até 180 dias), em pelo menos duas espécies animais (uma delas deve ser o
cão, o macaco ou outra espécie que não um roedor). Esses estudos não
foram realizados com a fosfo. Vale a pena registrar que, além disso, há pelo menos um estudo in vitro de Kano-Sueoka e colaboradores, publicado nos Anais da Academia de Ciências dos EUA (PNAS 1979; 76:5741-4), sugerindo que a fosfo estimulava
a proliferação de células de carcinoma mamário de ratos. Na mesma
linha, um dos estudos preliminares patrocinados pelo MCTI indicou que a fosfo poderia aumentar a incidência de metástases de tumores xeno-enxertados em roedores.
Portanto, a mais alta instância do sistema de revisão ética do país, a
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), aprovou o ensaio
clínico de uma substância (fosfo) cujo potencial benefício
terapêutico para os pacientes sujeitos da pesquisa era altamente
improvável (nada havia nesse sentido, exceto relatos anedóticos e não
documentados de pacientes “tratados” com a fosfo), e cujos eventuais riscos para os participantes não haviam sido devidamente avaliados.
Outro problema com o ensaio clínico da fosfoetanolamina “sintética”
aprovado pela Conep é a identidade e qualidade farmacêutica da
substância a ser estudada. A fosfoetanolamina é molécula formada
naturalmente no organismo pela fosforilação da etanolamina, e é um
composto intermediário na síntese de fosfolipídios que integram a
membrana celular. As moléculas da fosfo, quer sejam
sintetizadas no organismo, quer sejam produzidas na bancada do
laboratório, são moléculas idênticas, e por isso são identificadas por
um único número de registro no Chemical Abstracts (Número do CAS
1071-23-4, massa molecular 141,06). O rótulo de fosfo
“sintética”, dado pelos químicos que a sintetizaram no laboratório na
USP campus de São Carlos, aparentemente para diferenciá-la da
fosfoetanolamina disponível comercialmente, não faz qualquer sentido.
Uma análise por ressonância magnética nuclear dessa fosfo
“sintética” (contida nas pílulas distribuídas para os pacientes com
câncer) realizada por um respeitado laboratório de química da Unicamp,
contratado pelo MCTI, mostrou que a molécula de fosfoetanolamina
corresponde a apenas 32,2% do conteúdo da cápsula, sendo os demais
constituintes uma variedade de impurezas (incluindo fosfatos de Ca, Mg,
Fe, Mn, Al, Zn e Ba) remanescentes de uma síntese química de baixo
rendimento, que não foi sucedida por um processo de purificação. A fosfo “sintética” da pílula (na verdade, a forma farmacêutica da fosfo
sintética distribuída pelos químicos da USP é a cápsula), portanto, não
é uma única substância, mas uma mistura de substâncias em que
predominam uma diversidade de impurezas.
Para aprovar ensaios clínicos de novos medicamentos, é exigido que os
patrocinadores demonstrem que os medicamentos testados têm qualidade
farmacêutica adequada (identificação, pureza e potência) e que esta
qualidade seja consistente entre os lotes usados nos ensaios
pré-clínicos e clínicos. Obviamente, a qualidade farmacêutica da fosfo “sintética” usada nos ensaios realizados está longe de ser adequada para um ensaio clínico em pacientes.
Por fim, o delineamento do ensaio clínico da fosfo, que foi
aprovado pela Conep, não reúne as características metodológicas que são
esperadas de um estudo de eficácia e segurança de um novo medicamento.
Embora muitos detalhes não tenham sido publicados, as informações
disponíveis na mídia indicam que o ensaio não foi controlado, e que a
população estudada abrangeu um conjunto muito heterogêneo de pacientes
com tumores de diferentes localizações e, possivelmente, em diferentes
estágios da doença, e que sofreram diversos tratamentos anteriores.
O MCTI e a Secretaria de Saúde de São Paulo investiram pelo menos 10 e
1,5 milhões de reais, respectivamente, nos ensaios pré-clínicos e
clínicos da fosfo, o que representa apenas uma pequena fração
das centenas de milhões de dólares a que pode chegar o custo total do
desenvolvimento de um medicamento oncológico inovador. Onze milhões e
meio, entretanto, é um investimento muito elevado, quando os estudos
iniciais falharam em fornecer qualquer indício de que o medicamento
experimental, como é o caso da fosfo, tem potencial utilidade terapêutica.
O absurdo é ainda maior quando a aposta no improvável êxito do
desenvolvimento é feita quando há uma escassez generalizada de recursos
para financiar a pesquisa científica e a assistência médica no país.
Representantes do MCTI, da Secretaria de Saúde de São Paulo e alguns
pesquisadores envolvidos diretamente com os estudos da fosfo,
costumam justificar os investimentos alegando que as instituições de
pesquisa têm a obrigação moral de dar uma resposta aos “clamores” da
sociedade.
Não resta dúvida que as instituições devem responder questões como
essa que mobilizam a sociedade, mas no caso da “pílula do câncer”, a
resposta correta que deveria ter sido dada à população é que as
alegações terapêuticas de atividade anticâncer da fosfo são cientificamente infundadas e não justificam a realização de estudos não clínicos adicionais e de ensaios com pacientes.
A rápida aprovação, pela Conep, do ensaio clínico da fosfo,
negligenciando o fato do estudo proposto não atender vários requisitos
fundamentais que, de acordo com o entendimento de órgãos internacionais
como o Council for International Organizations of Medical Sciences
(CIOMS), são necessários para tornar eticamente aceitável a
investigação clínica de um novo medicamento, é sem dúvida a pior sequela
deixada por esse triste e absurdo episódio. A insólita decisão da Conep
sobre a fosfo, deixando de lado a razão e a isonomia, e
cedendo a uma onda de apoio formada no ambiente político, criou um
perigoso precedente, que põe em dúvida o rigor e a seriedade do sistema
de revisão ética do país.
Francisco José Roma Paumgartten é
formado pela Faculdade de Medicina da UFRJ, doutor em ciências pela
Escola Paulista de Medicina (atual Unifesp), professor e pesquisador
titular da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, Rio de Janeiro.
Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/6626554938516040.
paum@ensp.fiocruz.br
Referências
As referências originais dos estudos que apoiam as afirmações
contidas neste artigo podem ser encontradas em: “Sobre a alegada
eficácia anticâncer da pílula de fosfoetanolamina, fragilidade da
evidência científica e preocupações éticas”, de Paumgartten F. J. R.,
publicada em:
Vigil. sanit debate 2016; 4(3):4-12 (doi:
10.22239/2317-269X.00822pt).
Fonte