13/Jul/2017 às 15:31
Fernando Hideo*
Advogado e professor da PUC rebate, ponto a ponto,
todos as justificativas que constam na sentença de Sergio Moro para
condenar o ex-presidente Lula. Juiz chegou a citar matéria da Globo nove
vezes como prova documental
Fernando Hideo*
1. Não me proponho a exaurir o
tema, tampouco entrar num embate próprio das militâncias partidárias,
relatarei apenas as minhas impressões na tentativa de traduzir o
juridiquês sem perder a técnica processual penal.
2. OBJETO DA CONDENAÇÃO: a “propriedade de fato” de um apartamento no Guarujá.
Diz a sentença: “o ex-Presidente Luiz Inácio
Lula da Silva e sua esposa eram PROPRIETÁRIOS DE FATO do apartamento
164-A, triplex, no Condomínio Solaris, no Guarujá”.
Embora se reconheça que o ex-presidente e sua esposa jamais frequentaram esse apartamento, o juiz fala em “propriedade de fato”.
O que é propriedade ?
Código Civil – Art. 1.228.
O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o
direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou
detenha.
Portanto, um “proprietário de fato” (na
concepção desse juiz) parece ser alguém que usasse, gozasse e/ou
dispusesse do apartamento sem ser oficialmente o seu dono.
Esse conceito “proprietário de fato” não
existe em nosso ordenamento jurídico. Justamente porque há um outro
conceito para caracterizar essa situação, que se chama POSSE:
Código Civil – Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.
E não foi mencionada na sentença qualquer elemento
que pudesse indicar a posse do ex-presidente ou de sua esposa do tal
triplex: tudo o que existe foi UMA visita do casal ao local para
conhecer o apartamento que Léo Pinheiro queria lhes vender.
Uma visita.
Portanto, a sentença afirma que Lula seria o possuidor do imóvel sem nunca ter tido posse desse imóvel. Difícil entender ? Impossível.
3. TIPIFICAÇÕES:
– corrupção (“pelo recebimento de vantagem indevida do Grupo OAS em decorrência do contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobrás”)
– lavagem de dinheiro (“envolvendo a ocultação e dissimulação da titularidade do apartamento 164-A, triplex, e do beneficiário das reformas realizadas”).
4. PROVAS DOCUMENTAIS: um monte de
documento sobre tratativas para compra de um apartamento no condomínio
do Guarujá (nenhum registro de propriedade, nada que indique que o casal
tenha obtido sequer a posse do tal triplex) e uma matéria do jornal o
globo (sim, acreditem se quiser: há NOVE passagens na sentença que fazem
remissão a uma matéria do jornal o globo como se prova documental
fosse).
Esse conjunto de “provas documentais” comprovaria que o ex-presidente Lula era o “proprietário de fato” do apartamento.
Mas ainda faltava ligar o caso à Petrobras
(a tarefa não era assim tão simples, porque a própria denúncia do
Ministério Público do Estado de São Paulo — aquela mesmo que citava Marx
e “Hegel” — refutava essa tese)…
5. PROVA TESTEMUNHAL: aí entra a palavra dos projetos de delatores Léo Pinheiro e um ex-diretor da OAS para “comprovar” que o apartamento e a reforma seriam fruto de negociatas envolvendo a Petrobras.
Não há nenhuma prova documental para comprovar
essas alegações, apenas as declarações extorquidas mediante constante
negociação de acordo de delação premiada (veremos adiante que foi um “acordo informal”).
6. CORRUPÇÃO
Eis o tipo penal de corrupção:
Art. 317 – Solicitar ou receber, para si ou para
outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de
assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de
tal vantagem
Portanto, deve-se comprovar basicamente:
– solicitação, aceitação da promessa ou efetivo recebimento de VANTAGEM indevida; e
– CONTRAPARTIDA do funcionário público.
– solicitação, aceitação da promessa ou efetivo recebimento de VANTAGEM indevida; e
– CONTRAPARTIDA do funcionário público.
No caso, o ex-presidente foi condenado “pelo recebimento de vantagem indevida do Grupo OAS em decorrência do contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobrás”.
O pressuposto mínimo para essa condenação seria a comprovação:
– do recebimento da vantagem (a tal “propriedade de fato” do apartamento); e
– da contrapartida sobre o contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobrás.
– do recebimento da vantagem (a tal “propriedade de fato” do apartamento); e
– da contrapartida sobre o contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobrás.
Correto ?
Não.
Como não houve qualquer prova sobre a contrapartida
(salvo declarações extorquidas de delatores), o juiz se saiu com essa
pérola:
“Basta para a configuração que os pagamentos
sejam realizadas em razão do cargo ainda que em troca de atos de ofício
indeterminados, a serem praticados assim que as oportunidades apareçam.”
E prossegue, praticamente reconhecendo o equívoco da sua tese: “Na
jurisprudência brasileira, a questão é ainda objeto de debates, mas os
julgados mais recentes inclinam-se no sentido de que a configuração do
crime de corrupção não depende da prática do ato de ofício e que não há
necessidade de uma determinação precisa dele”.
Ou seja, como não dá pra saber em troca de que a OAS teria lhe concedido a “propriedade de fato” do triplex, a gente diz que foi em troca do cargo pra que as vantagens fossem cobradas “assim que as oportunidades apareçam” e está tudo certo pra condenação !
Para coroar, as pérola máxima da sentença sobre o crime de corrupção:
– “Foi, portanto, um crime de corrupção
complexo e que envolveu a prática de diversos atos em momentos temporais
distintos de outubro de 2009 a junho de 2014, aproximadamente”.
Haja triplex pra tanta vantagem…
– “Não importa que o acerto de corrupção tenha
se ultimado somente em 2014, quando Luiz Inácio Lula da Silva já não
exercia o mandato presidencial, uma vez que as vantagens lhe foram pagas
em decorrência de atos do período em que era Presidente da República”.
Haja crédito pra receber as vantagens até 4 anos depois do fim do mandato…
7. LAVAGEM DE DINHEIRO
A condenação por corrupção se baseia em provas
inexistentes, mas a pior parte da sentença é a condenação pelo crime de
lavagem de dinheiro.
Hipótese condenatória: lavagem de dinheiro “envolvendo a ocultação e dissimulação da titularidade do apartamento 164-A, triplex, e do beneficiário das reformas realizadas”.
Ou seja, o ex-presidente Lula teria recebido uma
grana da OAS na forma de um apartamento reformado e, como não estava no
nome dele, então isso seria lavagem pela “dissimulação e ocultação” de patrimônio.
Isso é juridicamente ridículo.
Lavagem é dar aparência de licitude a um capital ilícito com objetivo de reintroduzir um dinheiro sujo no mercado. Isso é “esquentar o dinheiro”.
Exemplo clássico: o cara monta um posto de gasolina ou pizzaria e nem
se preocupa com lucro, só joga dinheiro sujo ali e esquenta a grana como
se fosse lucro do negócio.
Então não faz o menor sentido falar em lavagem nesses casos de suposta “ocultação” da grana. Do contrário, o exaurimento de qualquer crime que envolva dinheiro seria lavagem, percebem ?
Não só corrupção, mas sonegação, roubo a banco,
receptação, furto… Nenhum crime patrimonial escaparia da lavagem segundo
esse raciocínio, pq obviamente ninguém bota essa grana no banco !
8. DELAÇÃO INFORMAL (OU SEJA, ILEGAL) DE LÉO PINHEIRO
Nesse mesmo processo, Léo Pinheiro foi condenado a
10 anos e 8 meses (só nesse processo, pois há outras condenações que
levariam sua pena a mais de 30 anos).
Mas de TODAS AS PENAS a que Léo Pinheiro foi
condenado (mais de 30 anos) ele deve cumprir apenas dois anos de cadeia
(já descontado o período de prisão preventiva) porque “colaborou informalmente” (ou seja, falou o que queriam ouvir) mesmo SEM TER FEITO DELAÇÃO PREMIADA OFICIALMENTE.
Ou seja, em um INÉDITO acordo de “delação premiada informal”,
ganhou o benefício de não reparar o dano e ficar em regime fechado
somente dois anos (independentemente das demais condenações).
Detalhes da sentença:
“O problema maior em reconhecer a colaboração é
a FALTA DE ACORDO de colaboração com o MPF. A celebração de um acordo
de colaboração envolve um aspecto discricionário que compete ao MPF,
pois não serve à persecução realizar acordos com todos os envolvidos no
crime, o que seria sinônimo de impunidade.” –> delação informal
“Ainda que tardia e SEM O ACORDO DE
COLABORAÇÃO, é forçoso reconhecer que o condenado José Adelmário
Pinheiro Filho contribuiu, nesta ação penal, para o esclarecimento da
verdade, prestando depoimento e fornecendo documentos” –> benefícios informais
“é o caso de não impor ao condenado, como
condição para progressão de regime, a completa reparação dos danos
decorrentes do crime, e admitir a progressão de regime de cumprimento de
pena depois do cumprimento de dois anos e seis meses de reclusão no
regime fechado, isso independentemente do total de pena somada, o que
exigiria mais tempo de cumprimento de pena” –> vai cumprir apenas dois anos
“O período de pena cumprido em prisão cautelar deverá ser considerado para detração” –> desses dois anos vai subtrair o tempo de prisão preventiva
“O benefício deverá ser estendido, pelo Juízo de Execução, às penas unificadas nos demais processos julgados por este Juízo” –> ou seja, de todas as penas (mais de 30 anos) ele irá cumprir apenas dois anos em regime fechado…
9. TRAUMAS E PRUDÊNCIA
Cereja do bolo: o juiz diz que “até caberia cogitar a decretação da prisão preventiva do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva”, mas “considerando
que a prisão cautelar de um ex-Presidente da República não deixa de
envolver certos traumas, a prudência recomenda que se aguarde o
julgamento pela Corte de Apelação antes de se extrair as consequências
próprias da condenação”.
É a prova (agora sim, uma prova !) de que não se julga mais de acordo com a lei, mas pensando nos traumas e na (im)prudência…
_______
Independentemente da sua simpatia ideológico-partidária, pense bem antes de aplaudir condenações dessa natureza.
Eis o processo penal de exceção: tem a forma de
processo judicial, mas o conteúdo é de uma indisfarçável perseguição ao
inimigo !
Muito cuidado para que não se cumpra na pele a
profecia de Bertolt Brecht e apenas se dê conta quando estiverem lhe
levando, mas já seja tarde e como não se importou com ninguém…
*Fernando Hideo é advogado e professor da PUC-SP
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