quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

A música era melhor em 1987? Pare de repassar bobagens

Recentemente, muita gente no Facebook anda repassando essa imagem:
 


A imagem ainda questiona: Atrofia cultural? Ferrugem Intelectual? Alienação Midiática? Não, queridos amigos. A resposta é: mau-caratismo para ganhar “likes”, disfarçado de pseudo-intelectualismo. E você não deveria estar repassando isso. Eu entendo a crítica e entendo a sua intenção e sua “indignação”, mas sua motivação está errada. Assim, no fim das contas, em vez de passar como “erudito”, conhecedor da discografia do Zé Ramalho, você passa como pedante e bobo, como o criador dessa imagem e dessas listas. Explico.
 
A primeira coisa que você tem que questionar — e na Internet, meu amigo, você tem que questionar tudo — é qual a origem dessas listas. No Brasil não temos uma entidade que lista isso oficialmente. Quer dizer, poderíamos ter, mas se você perguntar a qualquer artista o que ele acha da OMB (Ordem dos Músicos do Brasil) ou do ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), a referência em ambos os casos não é muito boa. Das duas, o ECAD seria a entidade mais indicada para cuidar disso, mas sua história é complicada. É um escritório criado pelo Governo Federal (Lei 12.853/2013, que é um complemento da Lei 9.610/1998), mas é uma entidade privada. Daí imaginam-se os problemas.

O que sobram? Os mecanismos populares. E é aí que você tem que começar a questionar. Se o termômetro é os Melhores do Ano do “Domingão do Faustão”, você já começou errado. Bem errado. E não é porque é o Faustão não. Como exemplo, um desses medidores muito populares foi um programa exibido pela Rede Globo entre 1972 e 1990 chamado “Globo de Ouro”.
 

 
Esse programa teve uma reedição em 2016, que passa no canal Viva (também do grupo Globo), mas não é o caso. Vamos para o original. No início, a ideia do programa era fazer uma parada de sucesso mensal, apresentando os 10 artistas mais tocados nas rádios. Em pouco tempo, o programa se tornou semanal. E você sabe qual a prática mais comum para os atores serem tocados nas rádios? Chama-se “Jabá”.
 
Para você entender melhor o que é o Jabá, vou te recomendar o livro “Do Vinil ao Download” do André Midani, que vai nos servir também em outro momento adiante. Midani é uma figura icônica na música brasileira, foi executivo de grandes gravadoras como Odeon, Phonogram e WEA, além de ser um personagem único. No livro, Midani conta a origem do Jabá (que não é brasileira, acredite) e uma curiosíssima história sobre o Dick Asher, presidente da CBS que lançara o disco “The Wall”, do Pink Floyd (você deve ter ouvido falar) e sua aventura contra a Máfia, que controlava o que tocava nas rádios. Ele conta:
“Ao saber que o Dick tinha instruído os colaboradores a não pagar para a execução da música do Pink Floyd, o pessoal da máfia solicitou um encontro com ele. Diante de sua recusa em recebê-los, a máfia deixou o seguinte recado: a música passaria, na semana seguinte, para a 10ª colocação, na outra cairia para a 50ª, na outra semana, para a 94ª, até desaparecer para sempre, apesar da demanda do público.”
(Midani, André. Do vinil ao download. Nova Fronteira.)
 
Aqui no Brasil, a “Máfia” era representada pelos donos das rádios, DJs e pessoal correlato. Pra ter uma ideia, em uma entrevista para a Playboy em Fevereiro de 2006 (edição 368), Antônio Augusto Amaral de Carvalho Filho, o popular “Tutinha”, dono da Rádio Jovem Pan AM/FM (e criador do incrível Djalma Jorge, vale lembrar), disse (entre outras coisas):
“Sou o mais temido, lógico. Sou assim mesmo. Se não tocar na minha rádio, a Jovem Pan, o artista não estoura. E não sou bonzinho.(…) Me chamem do que quiser. Na minha rádio tem nota fiscal, tô pouco me danando. O cara para entrar no Fantástico também paga. Jabá é quando você faz ilegalmente na empresa. O que eu faço são acordos comerciais.(…) Por exemplo: hoje chegam 30 artistas novos por dia na rádio. Por que eu vou tocar? Eu seleciono dez, mas não tenho espaço para tocar os dez. Aí eu vou nas gravadoras e para aquela que me dá alguma vantagem eu dou preferência.(…) Se você tem um produto novo, você paga pra lançar. Era isso o que eu fazia. Eu tocava, mas queria alguma coisa. Promoção, dinheiro. Ah, bota aí 100 mil reais de anúncio na rádio.”
Deu pra entender, né? Você ainda acredita nas listas do Faustão e outras de mesma natureza? Bem, então vamos partir para o que seria o segundo mecanismo: as vendas de discos. Eis um termômetro que não serve de parâmetro para nada. Basta lembrar que “Xou da Xuxa 3” ainda é um dos discos mais vendidos da nossa história (3 milhões e 216 mil cópias — dados da TV Pesquisa da PUC-Rio), e se você juntar toda a “obra” musical da Xuxa, ela já vendeu mais que a Beyoncé — o que poderia ser algum tipo de orgulho nacional mas não é, uma vez que todos nós sabemos que a Xuxa não é “cantora”. Mas se isso ainda não é argumento para você, vamos voltar à imagem e ao ano de 1987.
 
O “artista do ano” de 1987 (segundo a lista da imagem) foi o Rei, Roberto Carlos. Neste ano, ele lançou o disco “Águia Dourada”, cuja principal música de trabalho foi “Tô chutando lata”. Vamos ouvir essa preciosidade:
  
 
 
 
Digamos que apesar dos bons arranjos, não é assim um dos grandes momentos do Rei. Olha essa letra:
“Que coisa boa você me telefonar Eu ‘tava aqui querendo mesmo te chamar Que coincidência, você me telefonou Na hora exata
Sei que não tenho tido muito tempo pra nós dois Mas de repente deixei tudo pra depois E ‘tô à toa, ‘tou aqui sem fazer nada
Tô chutando lata Vem ficar comigo Tô chutando lata Tô à toa”
O disco é uma sequencia de músicas mais ou menos, como “Águia Dourada”, “O Careta”, “Menina”, “Ingênuo e Sonhador” e tantas outras que já não figuram no set list do Rei há um bom tempo.
 
Já o segundo lugar (ainda segundo a lista da imagem, lembre-se) ficou com o sempre excelente Djavan, e o ótimo “Não é azul mas é mar”. Inquestionável. Só seria melhor se fosse o merecido primeiro lugar, o que sabemos ser impossível em tempos de Roberto Carlos em alta — e aí eu recomendo outro livro, “Pavões Misteriosos” do jornalista André Barcinski, onde ele conta a história de como o Tim Maia contou pro Ritchie como o Rei acabou com ele, apenas pelo fato de “Menina Veneno” ter vendido mais que Roberto Carlos:
“Depois do sucesso de Vôo de Coração, ele nunca mais teria um LP entre os 50 mais vendidos do ano no Brasil. Quando foi gravar o segundo disco, ‘E a Vida Continua’, o cantor sentiu certa má vontade por parte da CBS. ‘Eles não divulgaram o disco, não pareciam interessados’ (…) Não entendia como havia passado, em tão pouco tempo, de prioridade a um estorvo na CBS. Até que leu uma entrevista de Tim Maia à revista IstoÉ, em que o Síndico afirmava que Roberto Carlos, o maior nome da gravadora, havia ‘puxado o tapete’ de Ritchie. ‘Eu não podia acreditar. O Roberto sempre foi muito carinhoso comigo, sempre fez questão de me receber no camarim dele, sempre me tratou muito bem. Até hoje, não acredito que isso tenha partido do Roberto’.
Um dia, Ritchie foi cumprimentar Tim Maia depois de um show no Canecão. O camarim estava lotado. Assim que viu Ritchie, Tim gritou: ‘Agora todo mundo pra fora, que vou receber meu amigo Ritchie, o homem que foi derrubado da CBS pelo Roberto Carlos’.”
(Barcinski, André. Pavões Misteriosos. Três Estrelas.)
 
No livro a história segue, contando que Ritchie também comprou briga com outro Rei, desta vez, o Rei do Jabá: Chacrinha. E, bem… Acabou o Ritchie.
 
Daí você já entendeu que as vendas são manipuladas pelas gravadoras, o que invalida novamente nosso termômetro. E assim, espero que já tenhamos invalidado a lista de 1987. Mas se ainda sobrar dúvidas, perceba que a terceira colocada da lista é a Marisa Monte, cujo primeiro álbum só saiu em 1989, e só era sucesso para o público e crítica que assistiu ao seu show “Veludo Azul” (dirigido pelo Nelson Motta, já que falamos em Jabá), pois antes disso ela estava na Itália.
 
Mas eu falei que entendia a crítica da lista, e realmente entendo. A qualidade da música caiu, e isso não é um efeito brasileiro, é mundial. Estamos esperando os próximos Lennon e Mccartney, Jobim e Vinícius, mas eles não vem. E você acha que a culpa é de quem? Pablo Vittar? Anitta? Nego do Borel? Eis a grande revelação: A CULPA É SUA. Sim, sua. Você que está lendo. Explico.
 
Eu não gosto de Pablo Vittar. Nem de Anitta. Nem de “É o Tchan” ou “Molejo”, que — Deus sabe lá porque, está na moda, graças a Internet. Nem de “Raça Negra”, “Leandro e Leonardo”, “Falamansa” e vários outros que já foram “Artistas do Ano” por listas tão questionáveis quanto esta que estão divulgando. Porém, eu não gosto pelo motivo mais simples possível: não é meu estilo musical. E é só isso. Não sou de uma raça superior, erudito como quem pensa que está sendo repassando essa lista. Os artistas que citei cumprem um papel importante chamado “entretenimento”. Em sua maioria são músicas esquecíveis, que servem para um momento. Ou você conhece alguma outra música além de “Tá tranquilo, tá favorável” do MC Bin Laden? Ou viu alguma aparição recente do Falamansa onde não tocaram o “Xote da Alegria”?
 
E eis o segundo item que você deve questionar: qual a relação da música com a sociedade HOJE. Em 1987, se você ia dar uma festa e fosse cuidadoso, no máximo gravava os melhores Hits em Fitas BASF/TDK de 90 minutos, para trocar poucas vezes durante a festa (se seu Tape Deck fosse bom, a fita até virava sozinha, 90 minutos de música sem parar!), ou ainda levava todos os seus discos (LP, vinil). Eu sou desse tempo. Lembro que ia comprar os discos (poucos, porque eram caros) na Galeria do Rock em São Paulo, e vinha dentro do ônibus já lendo os encartes para saber as letras. Sabia de cor e salteado o que tinha do Lado A e do Lado B. Conhecia cada detalhe da capa, e tudo isso antes mesmo de ouvir o disco. E isso era outro ritual. Colocar o disco, acompanhando as letras, decorando as músicas. “Apreciar” a música.
 
Hoje a música é “consumida” — uma palavra que está em moda. E isto remete exatamente ao que é a música neste cenário — um item de consumo. Sempre foi. Sim, sei que para você a música é mais do que isso, é profunda, toca a alma, como fazem as obras de arte. Mas é um produto, e hoje isso é muito mais claro. Hoje você procura o artista no Spotify e escuta toda a sua discografia. Se estiver dando uma festa, pode deixar tocando por dias, pois o Spotify procura artistas semelhantes (na opinião dele) e você pode dar uma rave de três dias sem mexer no player. O que talvez você não saiba, é que esse tipo de serviço de streaming, como o Spotify, termina de matar os pequenos e novos artistas, pois para conseguir algum retorno financeiro, suas músicas tem que ser executadas muitas vezes. Mas muitas mesmo. Pra ter uma ideia, a Taylor Swift retirou toda sua discografia do Spotify, alegando que o serviço estava minando o ganho do artista (está no Wall Street Journal, escrito pela mesma). Sabe quanto ela estava ganhando? 6 MILHÕES DE DÓLARES (de acordo com o Spotify). Aí eu te pergunto: se está ruim pra Taylor Swift, imagina para o cara que ninguém conhece, que recebe em média entre US$ 0.006 e US$ 0.0084 por cada stream?
 
E aí, anda escutando muito artista novo? Apoiando seu trabalho? Comprando seu CD? Aliás, quanto tempo faz que você não compra um CD? Ou um DVD do seu artista? “Ah, mas eu vou nos shows” — você pode dizer. E aí você cai no mesmo lugar de quem escuta Pablo Vittar: você vai ao show para se divertir, não para ouvir as músicas. Porque se você não é o operador de som do show, meu amigo, você não escuta as músicas.
 
“Arte” para ser “Arte” precisa de três elementos: o artista, o “objeto” artístico e o apreciador. E é por isso que arte nunca é igual para ninguém: cada apreciador recebe a arte de um jeito. E isso não é só com a música. Ou você acha que o filme da Mulher Maravilha ou do Homem-Aranha é uma “obra de arte”? É arte voltada para o entretenimento. Como existe na música. A qualidade musical, em geral, caiu? Caiu. Não discordo disso. As referências vão ficando mais rasas — e quem gosta de música acaba voltando muito no tempo por conta disso, a busca da qualidade. Mas isso é outro assunto.
 
A questão aqui, na divulgação dessa lista, nunca foi se Pablo Vittar é “pior” que Roberto Carlos, citando o seu timbre (que de repente apareceu muito especialista por aí). Mesmo porque o Rei pode ser um grande intérprete e compositor, mas grande “cantor” é questionável. Mas — na minha visão — é muito mais o que Pablo Vittar representa hoje, e não apenas na música. No fim das contas, a lista parece mesmo um “preconceito” meio velado, meio disfarçado. Mas sem politizar a discussão, vamos falar somente de música.
 
O que talvez precisamos compreender é que a relação com a música mudou. Como disse, hoje a música é “consumida”, pois o mundo ficou mais rápido, o acesso ficou mais simples. Muitas vezes, você dá play no seu stream e não sabe o nome da música, do álbum. Muitos desses “MCs” nem lançam disco completo, mas apenas músicas que fazem parte de coletâneas, pois eles vendem entretenimento. Vale assistir ao programa “A Liga”, exibido pela Bandeirantes em Junho de 2010 com o tema “Da Favela à Fama” pra entender como essas músicas são compostas, gravadas e promovidas (aqui tem uma primeira parte, mas você encontra o programa inteiro com relativa facilidade):
 
 
 
 
Repare que eu não estou falando da qualidade musical, mas sim da função social da música. E — assim como eu — a mídia vê isso. As gravadoras, as rádios (que ainda existem, mesmo sem a força de antes), as emissoras de TV sabem o que vende, melhor que você. O que você esquece, é que faz parte disso. Insisto: quanto tempo faz que você não apoia efetivamente os artistas que você gosta? E ainda: qual o seu “guilty pleasure”? Porque você tem, vai. Confesse. Eu conto o meu: eu gosto de “Ace of Base”, uma cópia ruim do ABBA, com músicas disco de qualidade bem duvidosa (aliás, como o ABBA). Nunca fui a um show (nem sei se teve no Brasil), mas comprei um CD certa vez, quando eu já sabia que música além de arte é diversão.
 
Esse tipo de lista, apesar da crítica válida, acaba sendo uma análise muito rasa de todo um comportamento. Não é o retrato de uma geração, é o retrato de um mercado. Quer deixar o cenário equilibrado? Apoie os artistas que você gosta. Mas propagar esse tipo de lista é só mostrar que você é alienado (calma, não é um xingamento). Pare de prestar atenção em quem está cantando, e passe a prestar atenção a quem está ouvindo, e você vai entender. E isso vale pra você também.
 
Fonte

 

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