por Natalia Leal
28.03.2018 |
18H03 |
País
Se ao lançar “O Mecanismo” o diretor José Padilha buscava uma grande repercussão – algo parecido ao que teve com “Narcos” e “Tropa de Elite”,
ele conseguiu. A série lançada pela Netflix na última sexta-feira (23)
com base na Operação Lava Jato despertou críticas e levou autoridades a
se posicionarem publicamente. Movimentos de esquerda acusam a produção de propagar informações falsas, e até a ex-presidente Dilma Rousseff decidiu publicar uma nota a respeito disso. Diz que a série é capaz de “assassinar reputações”.
O diretor, por sua vez, se defende.
Lembra que o trabalho começa com uma tela de fundo preto em que o
espectador lê o seguinte alerta: “Este programa é uma obra de ficção
inspirada livremente em eventos reais. Personagens, situações e outros
elementos foram adaptados para efeito dramático”. Depois, diz que a
série mostra apenas o esquema de corrupção montado por políticos. “Um
esquema que lesou os brasileiros, com a participação clara de Lula e de
Temer, que, durante boa parte do tempo, foram sócios na corrupção
sistêmica, lógica estruturante da política no Brasil”.
Fato é que nem tudo que é mostrado em O Mecanismo
aconteceu exatamente como aparece na tela. Mas também não se pode dizer
que tudo ali é falso. Para enriquecer o debate e tentar diminuir a
polarização, a Lupa
selecionou três enredos – três partes da série – que constam na trama e
que mesclam elementos reais com doses de dramatização. Atenção: contém spoilers! Veja a seguir:
O doleiro Roberto Ibrahim é preso por fraudes no Banco do Estado
do Paraná em 2003. Ele faz um acordo de delação premiada, homologado
pelo juiz Paulo Rigo e é libertado. Em 2013, dez anos depois, ele é um
dos três primeiros presos da operação Lava Jato, junto com outros
doleiros que mantinham uma casa de câmbio em um posto de gasolina em
Brasília. Ibrahim é preso na capital federal, após fazer uma ligação
para a filha e ter o celular rastreado pela Polícia Federativa. Ele
estava lá para levar uma mala de dinheiro aos responsáveis pela campanha
de Janete, candidata da situação. Depois de um tempo preso, ele faz um
novo acordo de delação, ao lado de João Pedro Rangel, diretor da
Petrobrasil, também preso na operação. O juiz que homologa a delação
conjunta é o mesmo do caso de Ibrahim em 2003.
Roberto Ibrahim é um personagem inspirado no doleiro Alberto Youssef. Ele, de fato foi preso em um caso ligado ao Banco do Estado do Paraná (Banestado) e realmente fechou acordo de delação premiada, sob o compromisso de não voltar a cometer crimes financeiros. Quem homologou a delação foi o juiz Sergio Moro, à época com 31 anos de idade.
Youssef também foi mesmo um dos primeiros presos da Lava Jato
– no dia 17 de março de 2014, na primeira fase da operação. Ele
realmente tinha uma mala de dinheiro consigo. Segundo o MPF, o valor
chegava a R$ 1,4 milhão.
Entre os outros detidos, também
estavam os doleiros Nelma Kodama e Carlos Habib Chater – este último,
dono de uma casa de câmbio e sócio de Youssef. A casa de câmbio ficava
em um posto de gasolina na Asa Sul, em Brasília, o Posto da Torre – que
funciona até hoje, embora a casa de câmbio não exista mais.
Detido pela Lava Jato, Youssef fez um acordo de delação premiada com a Justiça em setembro de 2014. Essa delação é vista como uma das principais da Lava Jato, porque deu os primeiros detalhes sobre o esquema
feito entre doleiros, partidos, empreiteiras e estatais. Seu conteúdo
colaborou para o trabalho dos investigadores. Quem homologou a delação
foi o juiz Sergio Moro, então com 41 anos.
A primeira fase da operação Lava Jato
teve 15 mandados de prisão preventiva expedidos – não apenas três, como
mostra a série O Mecanismo. No total, eram mais de 40 mandados, entre
prisões e busca e apreensão.
Youssef foi preso, na verdade, em São Luís,
no Maranhão, no hotel Luzeiros, um dos mais luxuosos da cidade.
Portanto, não estava em Brasília, e a ligação para a filha – que deu
brecha para que o celular fosse rastreado na série – também não é real. O
doleiro estava no Maranhão para fazer um pagamento da empreiteira UTC a
um secretário do governo de Roseana Sarney – a ex-governadora nega
qualquer envolvimento no esquema.
Youssef não fez um acordo de delação
conjunto com Paulo Roberto Costa, que inspira o personagem João Pedro
Rangel, na série. Na verdade, Paulo Roberto é o primeiro delator da Lava
Jato e teve seu acordo homologado em agosto de 2014. Youssef é o
segundo, com o acordo homologado em setembro de 2014. Ou seja: se na
série, o advogado que solicita que eles façam a delação impõe a condição
de que sejam os dois ao mesmo tempo para que a colaboração seja
assinada, na vida real, cada um cuidou da sua parte.
Quando a Lava Jato estoura, o ex-presidente Higino pede ao seu
ex-ministro da Justiça, conhecido como Mago e como Bruxo, que dê um
jeito e faça algum acordo com a Procuradoria-Geral da República de forma
a frear a operação. O ex-presidente diz que é preciso “estancar a
sangria”. O Mago faz, então, uma reunião com um grupo de empreiteiros
para que um acordo seja proposto à PGR. A ideia dele, depois de uma
conversa com o procurador, era que as empresas pagassem uma indenização
de R$ 1 bilhão à União, com o reconhecimento da participação nas
fraudes. Apenas uma das empreiteiras recusa o acordo. Mas, de qualquer
forma, ele não sai pois o Mago morre antes de selar o compromisso.
As empreiteiras investigadas na Lava
Jato realmente contaram com a consultoria jurídica de um ex-ministro da
Justiça. Márcio Thomaz Bastos, um dos maiores advogados criminalistas do
país, “exercia um papel informal de coordenador das defesas e escolheu
boa parte dos defensores dos principais investigados”, de acordo com reportagem publicada pelo Jota publicada após a morte dele, em 2015.
Em 2016, o jornal O Globo publicou uma reportagem com detalhes da negociação.
A reunião aconteceu seis meses após o início da Lava Jato, em setembro
de 2014. Nela, Bastos apresentou o valor de R$ 1 bilhão, que “teria
surgido a partir de conversas (…) com o procurador-geral da República,
Rodrigo Janot”. O montante deveria ser pago pelas empresas que
integravam o chamado “clube das empreiteiras”, ou seja, as que atuavam
em sistema de cartel nas licitações da Petrobras. O pagamento seria
acompanhado de um reconhecimento da participação nas fraudes.
A PGR nunca admitiu que houve
qualquer tentativa de acordo com os empreiteiros para parar a Operação
Lava Jato. E, segundo o jornal O Globo, a proposta foi recusada na
própria reunião entre os empresários. A principal oposição veio das
empreiteiras Odebrecht, OAS e Engevix. Ou seja: o acordo, de fato, nunca
foi feito, e as investigações prosseguiram.
“Estancar a sangria” realmente é uma
expressão que ficou conhecida no âmbito da Lava Jato. Mas não na boca de
um ex-presidente – nem sequer nos primeiros meses da operação. Quem disse isso foi o senador – e à época ministro do Planejamento – Romero Jucá (MDB),
em conversa telefônica com o ex-presidente da Transpetro Sérgio
Machado, interceptada pela operação. Isso ocorreu em maio de 2016, ou
seja, no terceiro ano da Lava Jato. É bom lembrar que a série de José
Padilha retrata acontecimentos dos primeiros seis meses de operação.
Em O Mecanismo, o “clube das empreiteiras”
é chamado de “clube dos 13”, referência ao número de empreiteiras que
integraria o esquema investigado por PF e MPF. Mas o que se sabe é que
há mais do que 13 empreiteiras envolvidas na Lava Jato. Seriam, pelo
menos 17. Além disso, havia um “clube VIP”, formado por seis empresas:
Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, Odebrecht, OAS, Queiroz Galvão e UTC.
Essa divisão foi formada, segundo as investigações, em 2007.
Na série, durante a reunião em que o
Mago apresenta uma espécie de minuta do acordo, apenas uma empreiteira
se opõe: a Miller & Bretch, representada pelo diretor, Ricardo
Bretch – inspirado em Marcelo Odebrecht. Todos os outros 12 concordam
com a tentativa de acordo e, inclusive, fazem as contas para que o valor
de R$ 1 bilhão seja dividido apenas entre eles, desconsiderando a 13ª
empresa que integra o esquema. Na realidade, a discussão foi um pouco
mais dura, com discordância de outras empresas.
Na cena, Ricardo Bretch ainda faz um
discurso mencionando o cuidado que tem com os pagamentos de propina
feitos pela empreiteira. A referência é ao Setor de Operações
Estruturadas da empreiteira Odebrecht, descoberto mais tarde e
confirmado em delação de diretores da própria empresa. A divisão tinha
executivos e coordenava todo o pagamento de propina a políticos feito a
partir dos contratos com a Petrobras.
Sobre a morte do Mago: embora o
roteiro da série dê a entender que o acordo entre empreiteiros e PGR
ficaria de pé se o ex-ministro da Justiça não tivesse morrido, na linha
do tempo da operação Lava Jato real, é bem diferente. Na série, os
empresários são presos só depois da morte do ex-ministro. Na vida real,
os empreiteiros começaram a ser presos no dia 14 de novembro de 2014.
Marcio Thomaz Bastos, que inspira o personagem Mago, morreu no dia 20 de
novembro daquele ano.
Com as delações de Ibrahim e JPR, a Polícia Federativa parte de
vez para cima das empreiteiras. Mas o juiz Paulo Rigo exige que um dos
envolvidos no esquema fale antes de autorizar as prisões. O investigador
afastado Marco Rufo convence o dono da Estruturax a colaborar com a PF.
A partir do depoimento dele, são emitidos mandados de prisão para
executivos de 12 das 13 empresas envolvidas no esquema. Apenas a Miller
& Bretch escapa – é alvo de um mandado de busca e apreensão, e nada
mais. A fase em que os empresários são presos é batizada de Juízo Final.
Quando eles começam a chegar na carceragem da PF em Curitiba, Ibrahim
já foi liberado, usando tornozeleira eletrônica. JPR, no entanto,
permanece no local.
As delações de Alberto Youssef e
Paulo Roberto Costa de fato embasaram boa parte do que a PF investigou a
partir dali sobre as empreiteiras. A 7ª fase da operação Lava Jato, que
foi mesmo batizada de Juízo Final, é quando começam a ser presos os
grandes empresários ligados ao esquema fraudulento das licitações e
obras da Petrobras. Essa fase foi deflagrada em 14 de novembro de 2017 e
nela foram detidos executivos, diretores e sócios de oito das nove empresas
que, até então, se sabia que faziam parte do cartel. A Odebrecht, que
inspira a Miller & Bretch da ficção de José Padilha, realmente ficou
de fora da primeira onda de prisões. Marcelo Odebrecht só foi detido na
14ª fase da Lava Jato, em junho de 2015.
Na série, a Juízo Final é retratada como
a fase de prisão dos empreiteiros – e nada mais. Mas vale lembrar que
Renato Duque, ex-diretor de serviços da Petrobras, também foi detido
nessa etapa. Ao todo, foram expedidos 85 mandados judiciais, sendo seis de prisão preventiva e 21 de prisão temporária.
Não há qualquer informação de que
tenha havido um depoimento de diretor ou executivo ligado a uma das
empresas do esquema antes das prisões, como o roteiro sugere. Na série,
quem faz esse depoimento é um executivo da Estruturax, inspirada na real
Engevix. O dono da Engevix, José Antunes Sobrinho, só se propôs a fazer
um acordo de colaboração com a Justiça em 2015 – ele foi preso em setembro daquele ano, na 19ª fase da Lava Jato.
Na ficção, na chegada dos
empreiteiros à carceragem da PF, o ex-diretor da Petrobrasil João Pedro
Rangel ainda está detido. Mas Paulo Roberto Costa, que inspira o
personagem, deixou a PF em 30 de setembro de 2014, um mês e meio antes
de os empreiteiros chegarem. Em compensação, Padilha colocou Ibrahim
fora da cadeia logo depois que a delação premiada foi fechada na série.
Mas Youssef só deixou a carceragem da PF em novembro de 2016, usando tornozeleira eletrônica. Ou seja, ele estava lá quando os empreiteiros chegaram.
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