Camilla Costa
Da BBC Brasil em São Paulo
25 setembro 2014
Da BBC Brasil em São Paulo
25 setembro 2014
Bom funcionamento faz com que pacientes como Cintia (à direita) deixem atendimento privado.
Cintia
Vieira Leal, de 29 anos, começou a frequentar o Posto de Saúde da
Família (PSF) de seu bairro em Uberlândia (MG) apenas "enquanto o novo
convênio não ficava pronto". Ao descobrir uma doença durante a gravidez,
no entanto, decidiu abandonar o tratamento privado em favor do SUS.
"Nunca fui tão bem tratada", disse à BBC Brasil.
Apesar dos
problemas na implantação do modelo de atenção básica no Brasil, médicos
de família e comunidade - os especialistas que atuam na atenção básica -
entrevistados pela BBC Brasil dizem que histórias de pacientes que
trocaram o plano de saúde pelo acompanhamento com equipes de Saúde da
Família são mais comuns do que parecem, quando o modelo funciona bem em
um município.
Nos postos de saúde e unidades básicas, uma equipe
de médicos, enfermeiros e agentes comunitários deve acompanhar até
quatro mil pessoas – desde crianças até idosos. O bom funcionamento do
modelo, que também é adotado por países como Reino Unido, Canadá e
Austrália, ajudaria a evitar a superlotação de emergências e hospitais,
um dos principais gargalos do atendimento médico no país.
Na maior
parte das unidades, no entanto, pacientes e profissionais sofrem com a
infraestrutura precária e a dificuldade de completar equipes de
profissionais, especialmente em municípios menores e mais distantes das
capitais.
O desconhecimento da população sobre o funcionamento do
sistema de saúde também faz com que muitos pacientes procurem
diretamente as Unidades de Pronto Atendimento (UPA) ou hospitais.
"Eu
tinha ido poucas vezes nessas unidades do SUS, porque tudo costuma ser
mais rápido pelo convênio. Mas minha vizinha fazia o atendimento lá e
resolvi começar o pré-natal", disse Cintia, que trabalha como porteira, à
BBC Brasil.
Quando seu novo plano de saúde ficou pronto, ela
chegou ir a consultas com outro médico, mas decidiu deixar o atendimento
privado e concluir a gestação com o acompanhamento da equipe do posto
de saúde.
"Na minha outra gravidez fui atendida pelo convênio, mas
o atendimento era superficial. O médico não me perguntava muito sobre
mim e eu não sentia a oportunidade de perguntar para ele. No posto de
saúde, gostei de como a equipe me acolheu. Pareciam ter interesse em me
ajudar, tirar minhas dúvidas", diz.
Durante a gestação, a equipe
diagnosticou Cintia com toxoplasmose - uma infecção que oferece sério
risco ao bebê. "Meu convênio não me dava segurança de que teria
cobertura para o que precisasse e a doutora me convenceu a ficar no
SUS."
'Outro tipo de complexidade'
A
médica que atendeu Cintia, Natália Ferreira, afirma que parte do
preconceito com relação aos médicos de família parte de acreditar que o
trabalho nos postos de saúde é "simples".
"Os recém-formados acham
que ir para a atenção básica até passar em uma residência é mais fácil
do que ir para uma urgência, onde os problemas são mais agudos e é
preciso ter mais experiência. Mas não é tão fácil assim, é outro tipo de
complexidade", disse à BBC Brasil.
"Na atenção básica você não
precisa tanto da tecnologia, dos exames complexos. Mas nós lidamos com a
situação do indivíduo e com a complexidade clínica. Se um sujeito é
hipertenso e eu fosse um cardiologista, meu foco seria na doença dele.
Quando eu, médica de família, recebo um hipertenso, eu considero que ele
é idoso, que tem outras doenças associadas. É como se eu montasse o
quebra-cabeça das especialidades."
Mesmo encaminhando o paciente
para um especialista, segundo Natália, o médico da família deve,
idealmente, continuar fazendo o controle da sua situação. "Somos nós que
lidamos com a dificuldade de a família cuidar dele, de ele não saber
entender a receita, de não querer tomar o remédio", afirma.
A
médica de 29 anos, que hoje orienta recém-formados na residência de
medicina da família e comunidade da Universidade Federal de Uberlândia,
diz que os novatos "se espantam com a quantidade e com o tipo" de
pacientes que procuram o posto de saúde.
Um médico de família divide sua carga horária semanal em atendimentos no posto ou unidade básica de saúde - que ocupam a maior parte do seu tempo - e visitas às casas dos pacientes quando é necessário. Em alguns casos, um trabalho de investigação chega a ser necessário para solucionar problemas que atingem pacientes de um bairro ou comunidade.
Há cerca de três meses, Natália e outras
médicas de seu posto de saúde foram até uma creche em Uberlândia
descobrir por que três crianças atendidas por elas permaneciam abaixo do
peso normal. "Descobrimos que a creche servia as refeições às crianças
com um intervalo muito pequeno entre uma e outra e não controlava se
elas comiam", diz.
"Algumas não tinham fome na hora da refeição e
tomavam só leite o dia inteiro. Por isso não estavam ganhando peso". A
solução provisória encontrada foi negociar o acompanhamento especial das
três crianças pela professora, mas as médicas questionaram junto às
autoridades o cardápio das creches do município e aguardam resposta.
'Deveria ser assim'
Mesmo
satisfeita com o atendimento que teve na equipe de Natália durante a
gravidez, Cintia Leal diz que nem tudo funcionava tão bem. "Eu tinha
medo de perder a consulta e ter que pegar a fila de novo no posto, era
desgastante. O ultrassom lá também é muito demorado. Eu não consegui
nenhum, fiz todos pelo plano de saúde."
O bebê nasceu há cerca de
um mês e ela diz que pretende continuar frequentando o PSF. "Não sei se
esse projeto é só aqui ou se foi só o jeito dela (da médica) mesmo. Mas
acho que deveria ser assim em todos os lugares", diz.
Apesar de
trabalhar em uma unidade de referência em sua cidade, Natália reconhece
que a infraestrutura é um dos principais problema dos profissionais na
atenção básica - e um fator que afasta os pacientes.
"Muitas vezes
falta o básico: macas, tensiômetros, medicamentos. E temos dificuldades
ao encaminhar os pacientes para os especialistas e os hospitais.
Pegamos pacientes graves, cujos casos não conseguimos resolver porque
falta ambulância, falta leito no hospital", diz.
"Às vezes tenho
um paciente com uma condição que não é tão aguda, mas que eu não consigo
resolver porque encaminho para o especialista e a consulta demora
quatro ou cinco meses."
A dificuldade para conseguir realizar
exames mais complexos também contribui para a dificuldade dos médicos de
família para resolverem uma quantidade maior de problemas de pacientes,
segundo a profissional.
"Temos um número de exames de cada tipo
que podemos fazer e um número de vagas em cada especialidade, definidos
pelo município, mas em muitos lugares essa conta não fecha. Aí a fila
fica enorme e os exames demoram meses pra sair. A minha fila de
ultrassom hoje é de sete meses, no mínimo. No caso das gestantes e de
pacientes muito graves eu faço um pedido de prioridade", diz.
Em
entrevista à BBC Brasil, o secretário de saúde de Uberlândia, Almir
Fontes, afirmou que o número de equipes de Saúde da Família na cidade
aumentou de 50 para 70 em um ano e meio de gestão, na tentativa de
impedir a sobrecarga do atendimento.
Fontes afirmou também que a
prefeitura reformulou o sistema de entrega de medicamentos e o controle
da compra dos materiais, mas fala de "problemas logísticos" e burocracia
que causam atrasos na distribuição.
"Parte dos medicamentos da
atenção básica é distribuída pelo Estado e recentemente houve uma demora
por conta de um problema logístico. Reestruturamos a nossa central de
farmácia e nesse momento estamos sem problema de falta de medicamentos.
Mas isso também é dinâmico, há questões logísticas que às vezes não
dependem de nós", afirmou.
Ainda de acordo com o secretário, um
médico cardiologista, a demora na realização de exames como o ultrassom
se deve, em parte, a um excesso de pedidos por parte dos profissionais.
"O profissional hoje é mais voltado para a tecnologia do que para o
exame, a conversa com o paciente. Por causa de uma cultura de formação,
às vezes ele pede exames que não seriam realmente necessários após o
exame clínico. Conseguimos reduzir as filas até para exames mais
complexos, como a ressonância, mas a demanda do ultrassom de fato
continua grande."
Mesmo com problemas, atenção de médicos de família 'conquista' usuários: à esquerda, Natália Ferreira atende Irene Silva
Vínculo
Apesar
dos atrasos e filas, o atendimento pode fazer a diferença na hora de
"conquistar" os pacientes. Durante a residência os médicos de família e
comunidade são encorajados a estabelecer vínculos com as pessoas que
acompanham - algo que nem sempre é comum em profissionais sem essa
especialidade.
"Por sermos uma especialidade com menos prestígio, a
abordagem da medicina de família ainda é desconhecida por muitos
médicos que atuam na atenção básica", diz Natália Ferreira.
A dona
de casa Irene Gonçalves da Silva, de 50 anos, também se disse
"convertida" ao SUS pelo acolhimento da equipe. "Natália não me obriga a
nada, mas conversa muito comigo. Desde então estou com ela e não
pretendo mudar", disse à BBC Brasil.
Irene chegou à equipe do
mesmo PSF com sintomas de descontrole de sua diabetes. "Eu nunca tinha
feito atendimento no Posto de Saúde. Quando comecei com o problema de
diabetes eu tinha convênio, então eu ia a um endocrinologista há três
anos."
Após perder o convênio quando seu marido mudou de empresa,
Irene continuou pagando consultas, mas sua saúde deteriorou. "Comecei a
inchar, ter dores de cabeça, tinha dificuldade de enxergar. Quando
Natália me atendeu e pediu os exames, descobriu que eu já estava com
insuficiência renal crônica. Aí ela trocou meus medicamentos e eu fui
melhorando."
"Pra te falar a verdade, eu não achava que ia ter
esse atendimento no SUS. Ela tira um tempo assim para te ligar, para
saber o que está acontecendo. Isso eu nunca tive, nem no convênio",
afirma.
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