05/Feb/2015 às 18:20
Cassiano Ricardo Haag*
Assim que saiu a divulgação dos resultados do ENEM,
a mídia tratou de gritar aos quatros cantos que, dentre os 6,2 milhões
de candidatos que realizaram a prova, em torno de 529 mil obtiveram nota
zero. Evidentemente, como sempre, o resultado, por muitos, foi
atribuído à suposta má qualidade da escola pública brasileira, assim
como ao suposto despreparo dos professores. Como professor de Língua
Portuguesa, estudei o processo de avaliação do ENEM – diferentemente dos
jornalistas que cobrem o assunto – e vou tentar trazer um pouco de
lucidez a essa questão.
Leia também: O jovem estudante de escola pública que acertou 95% do ENEM
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1. Tirar nota zero não é sinônimo de não saber
escrever. Nota zero é decorrência de, por algum motivo, o candidato
descumprir a proposta. Eis os motivos para nota zero no caso do ENEM:
a) Fuga ao tema: esse foi o principal
motivo do meio milhão de zeros. O tema era “A PUBLICIDADE INFANTIL EM
QUESTÃO NO BRASIL”, portanto, não adiantaria fazer um excelente texto
sobre o trabalho infantil, sobre a pedofilia ou sobre a violência contra
a criança. Por mais bem escrito que estivesse, seria nota zero.
b) Escrever outro gênero textual que não
fosse uma redação dissertativo-argumentativa: se o candidato fosse um
poeta, por exemplo, e escrevesse um poema belíssimo sobre o assunto, uma
verdadeira obra de arte, mesmo assim, receberia nota zero, pois só
podem ser avaliadas redações dissertativo-argumentativas, ou seja, um
texto que apresente e defenda um ponto de vista sobre o tema proposto,
por meio de argumentos, com uma estrutura formada por proposição,
argumentação e conclusão. É muito comum o candidato escrever um texto
eminentemente narrativo, o que o elimina do processo, independentemente
da qualidade da narração.
c) Texto insuficiente: o ENEM ainda
aceita textos curtos, a partir de 8 linhas (acredito que, no futuro,
isso mude!). Ainda assim, alguns candidatos escrevem menos que isso e
são eliminados, independentemente da qualidade da escrita. Isso se deve –
ao contrário do que alguns podem pensar – não meramente à incompetência
do candidato, mas ao nervosismo ou ao mau planejamento do tempo (é uma
péssima ideia deixar a redação para o final!), embora também à pouca
qualificação do candidato em alguns casos.
d) Cópia do texto motivador: alguns
candidatos, por má intenção (ou ingenuidade mesmo), utilizam cópias dos
textos motivadores na redação, o que os desclassifica do processo, mesmo
que as partes não copiadas estejam bem escritas. Quando isso ocorre,
não é possível medir se o candidato sabe ou não escrever, bem ou mal,
pois o texto apresentado não é dele. O erro não foi de conhecimento, mas
de conduta.
e) Fere direitos humanos: o ENEM não
aceita candidatos que escrevam contra os direitos humanos, mesmo que
quase toda a redação seja de excelente nível, totalmente bem escrita.
Por exemplo, se, em determinado momento, o candidato escreve que, por
algum motivo, alguém deva ser punido com algum tipo de tortura ou pena
de morte, a redação será zerada.
f) Parte desconectada: em razão das
ocorrências com a redação que falava da receita de miojo, do hino de sei
lá que time, etc., ocorridas no ano passado, houve esse acréscimo nas
situações que levam à nota zero no ENEM. Essa regra é razoavelmente
nova, pois quase nenhum vestibular considerava isso, já que todos os
processos de seleção partem do princípio da boa-fé do candidato. Esse
princípio precisou ser rompido não pela desqualificação do ENEM, mas
pela má-fé de alguns pouquíssimos candidatos. Muitas vezes, o estudante
sai do assunto por “se perder” no texto, sem necessariamente
ter desejado ridicularizar a prova. Por isso, não era necessário
excluí-lo do processo. Agora é. Neste ano, novamente, houve muitos casos
de engraçadinhos. Foram excluídos 3.362. Como sempre estamos sujeitos a
erro humano (ou mesmo, na ingenuidade, o avaliador deliberadamente
desconsidera a parte desconectada, pois acha que não tenha sido por
mal), este ano, vi que um moleque, que queria muito aparecer, escapou do
zero injustamente. Podem ainda aparecer outros casos. No entanto, a
grande maioria foi punida, sem dúvidas.
g) Outros motivos: sempre por vontade do
candidato em ser desclassificado, por exemplo, fazer um desenho no lugar
de uma redação.
Portanto, como dito acima, nota zero NÃO está relacionada à qualidade
do ensino. Quando o sujeito tira nota zero, não é possível saber se ele
aprendeu ou não algo na escola. Muitas vezes, dá para imaginar que ele
não aprendeu nada na vida, pois tenta desqualificar um processo sério
apenas para aparecer na mídia.
2. Por outro lado, podemos medir a qualidade dos
candidatos a partir das notas obtidas. Neste ano, 4.438.176 obtiveram
notas até 600 pontos na redação do ENEM, enquanto 1.226.014 alcançaram
entre 601 e 1000 pontos. Esses são números a serem considerados para ver
que o brasileiro precisa se qualificar muito ainda no que se refere à
produção escrita. Todavia, é absurdo (com todo o respeito a quem pensa
assim) atribuir essa nota à escola pública. Primeiro, porque esses
números não separam ainda quem fez escola pública, quem fez escola
privada, quem estava há anos sem estudar ou mesmo quem ainda não
concluiu o Ensino Médio. Segundo, porque não se está levando em conta
quem realmente se importou de estudar para a prova daqueles que sequer
tenham buscado qualquer informação a respeito da redação do ENEM. Por
exemplo, o ENEM considera como uma das cinco competências avaliadas a
elaboração de uma proposta de intervenção para o problema levantado no
tema, o que não costuma ser exigido em outros vestibulares tradicionais.
Se o candidato não sabe disso, mesmo que a redação esteja boa, já
inicia perdendo 200 pontos de sua nota, ou seja, passa a concorrer a
apenas 800 pontos, dos quais serão feitos outros descontos necessários.
Portanto, facilmente, estará abaixo de 600 pontos no final da avaliação.
3. Por fim, a mídia está desviando o real motivo de a
maioria dos candidatos que receberam a nota zero: o tema. O problema é
que o tema deste ano mexeu em um dos calcanhares de Aquiles dos
poderosos da mídia: a reflexão sobre a publicidade infantil no Brasil. O
tema é pouco discutido na sociedade, pois quem promove os espaços
midiáticos de debate tem sistematicamente silenciado sobre esse assunto.
O ENEM acertou na escolha do tema, mas, mesmo assim, a mídia não coloca
isso em discussão e prefere acusar nosso sistema de ensino. Por que
será? Bem, isso eu prefiro deixar para os comentários de quem teve
paciência de ler até aqui.
*Cassiano Ricardo Haag é professor de Língua Portuguesa, doutorando em Linguística Aplicada pela UNISINOS e colaborou para Pragmatismo Político.
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